Amigos do Fingidor
domingo, 30 de novembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Luís Vaz de Camões (1524/5-1580)
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
sábado, 29 de novembro de 2008
Poesia em tradução
Romance da lua, lua
Federico García Lorca (1898-1936)
A lua veio à frágua
com sua anquinha de nardos.
O menino a olha olha.
O menino a está olhando.
No ar comovido
move a lua seus braços
e exibe, lúbrica e pura,
seus seios de duro estanho.
Foge, lua, lua, lua.
Se viessem os ciganos,
fariam com teu coração
colares e anéis brancos.
Menino, deixa que eu dance.
Quando vierem os ciganos,
te encontrarão sobre a bigorna
com os olhinhos fechados.
Foge, lua, lua, lua,
que já ouço seus cavalos.
Menino, deixa-me, não pises
minha brancura engomada.
O ginete se acercava
tocando o tambor da planície.
Dentro da frágua o menino
está com os olhos fechados.
Pelo oliveiral vinham,
bronze e sonho, os ciganos.
As cabeças levantadas
e os olhos semicerrados.
Como canta o bufo,
ai, como canta na árvore!
Pelo céu vai a lua
com um menino na mão.
Dentro da frágua choram,
dando gritos os ciganos.
O ar vela-a, vela.
O ar a está velando.
(Trad.: William Agel de Melo)
Federico García Lorca (1898-1936)
A lua veio à frágua
com sua anquinha de nardos.
O menino a olha olha.
O menino a está olhando.
No ar comovido
move a lua seus braços
e exibe, lúbrica e pura,
seus seios de duro estanho.
Foge, lua, lua, lua.
Se viessem os ciganos,
fariam com teu coração
colares e anéis brancos.
Menino, deixa que eu dance.
Quando vierem os ciganos,
te encontrarão sobre a bigorna
com os olhinhos fechados.
Foge, lua, lua, lua,
que já ouço seus cavalos.
Menino, deixa-me, não pises
minha brancura engomada.
O ginete se acercava
tocando o tambor da planície.
Dentro da frágua o menino
está com os olhos fechados.
Pelo oliveiral vinham,
bronze e sonho, os ciganos.
As cabeças levantadas
e os olhos semicerrados.
Como canta o bufo,
ai, como canta na árvore!
Pelo céu vai a lua
com um menino na mão.
Dentro da frágua choram,
dando gritos os ciganos.
O ar vela-a, vela.
O ar a está velando.
(Trad.: William Agel de Melo)
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Soneto 241 – Ensaístico
Glauco Mattoso
Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.
A nova não é casta, nem contrasta
com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.
Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:
na universalidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.
Chamemo-la de fase iconoclasta,
à minha poesia antes de cego.
Pintei, bordei. Porém não a renego.
Forçou-me a invalidez a dar um basta.
A nova não é casta, nem contrasta
com velhas anarquias. Só me entrego
ao pé, onde em soneto a língua esfrego.
Chamemo-la de fase podorasta.
Mas nem por isso é menos transgressiva.
Impõe-se um paradoxo na medida
da forma e da temática obsessiva:
na universalidade presumida,
igualo-me a Bocage, Botto e Piva.
Ao cego, o feio é belo, e a dor é vida.
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Sexta-feira
quinta-feira, 27 de novembro de 2008
Romance do banho
Elson Farias
Era morena tostada,
forte, esbelta como um cão,
os cabelos eram claros
de saboroso castanho;
longas tiras escorriam
na costa vincada em curvas
– eram cobras encravadas
no dorso de uma raiz;
o calcanhar era firme,
seu andar arroliçado,
as ilhargas mal roçavam
nas pregas da saia fina.
Fendeu-se o cerrado verde
de patativas e anus,
filhos de caba, sol quente,
ventos gerais, água e mel;
ela vinha – balde, cuia,
dentes expostos, carnudos
os lábios, flor de papoula
a cantar e a se despir.
*
Ela vinha, mas menino
balador de passarinhos,
não sabia descobri-la;
pressentia apenas vagos
sons das patas elegantes
dos poldros do meu instinto,
rachando cones de pedra
no meu raciocínio mole.
*
Ela esfalfou-se nas águas,
misturou-se com os peixes,
camarões a beliscaram,
escamas, pés, gumes virgens;
o relampejo das palmas
como línguas de uma faca;
a sombra escura no fundo,
as coxas alvas e turvas;
peixes, menina de banho,
anáguas brancas ao sol.
Era morena tostada,
forte, esbelta como um cão,
os cabelos eram claros
de saboroso castanho;
longas tiras escorriam
na costa vincada em curvas
– eram cobras encravadas
no dorso de uma raiz;
o calcanhar era firme,
seu andar arroliçado,
as ilhargas mal roçavam
nas pregas da saia fina.
*
Fendeu-se o cerrado verde
de patativas e anus,
filhos de caba, sol quente,
ventos gerais, água e mel;
ela vinha – balde, cuia,
dentes expostos, carnudos
os lábios, flor de papoula
a cantar e a se despir.
*
Ela vinha, mas menino
balador de passarinhos,
não sabia descobri-la;
pressentia apenas vagos
sons das patas elegantes
dos poldros do meu instinto,
rachando cones de pedra
no meu raciocínio mole.
*
Ela esfalfou-se nas águas,
misturou-se com os peixes,
camarões a beliscaram,
escamas, pés, gumes virgens;
o relampejo das palmas
como línguas de uma faca;
a sombra escura no fundo,
as coxas alvas e turvas;
peixes, menina de banho,
anáguas brancas ao sol.
quarta-feira, 26 de novembro de 2008
a casa perscrutada – varanda
Zemaria Pinto
as estrelas na varanda
sussurram nos meus ouvidos
poemas de amor e ódio
insônia, pânico, estresse
a madrugada é uma fera
engendrada em pesadelos
figurados na vigília
que nos lacera a vontade
no severo dia-a-dia
o Cruzeiro aponta o norte
como um palhaço chorando
sobre a cidade invisível;
o luzeiro levantado
esparge trevas nos olhos
e muda o sono em ruína
se é tempo de temporal
os relâmpagos coriscam
rebrilhando a oriente
feito curumins brincando
– a chuva lava meu peito
na noite dentro da noite
na manhã descortinada
a dissonância dos pássaros
denuncia o novo tempo:
saindo da letargia
o corpo aos poucos se esperta
e entra em trabalho de sonho
o sol que a manhã levanta
reverbera em minha cara
poemas de amor e ódio
as estrelas na varanda
sussurram nos meus ouvidos
poemas de amor e ódio
insônia, pânico, estresse
a madrugada é uma fera
engendrada em pesadelos
figurados na vigília
que nos lacera a vontade
no severo dia-a-dia
o Cruzeiro aponta o norte
como um palhaço chorando
sobre a cidade invisível;
o luzeiro levantado
esparge trevas nos olhos
e muda o sono em ruína
se é tempo de temporal
os relâmpagos coriscam
rebrilhando a oriente
feito curumins brincando
– a chuva lava meu peito
na noite dentro da noite
na manhã descortinada
a dissonância dos pássaros
denuncia o novo tempo:
saindo da letargia
o corpo aos poucos se esperta
e entra em trabalho de sonho
o sol que a manhã levanta
reverbera em minha cara
poemas de amor e ódio
terça-feira, 25 de novembro de 2008
O ai do samurai
Arnaldo Garcez
o ai do samurai
não é um grito de dor:
é a precisão do corte,
a velocidade da morte
na defesa da manhã
o ai do samurai
é poder gritar
no fio da lâmina
a lágrima prata
que acende a escuridão
o ai do samurai
é a coragem de resistir
aos covardes
que destroem o prazer
de (r)existir
o ai do samurai
é a liberdade da infância
pintando sua vingança
na cara-pálida do tempo
covarde
o ai do samurai
é o silêncio que povoa
nossa vontade de mudar
a cara desse país:
com arte
porrada
& poesia
o ai do samurai
não silencia!
o ai do samurai
não é um grito de dor:
é a precisão do corte,
a velocidade da morte
na defesa da manhã
o ai do samurai
é poder gritar
no fio da lâmina
a lágrima prata
que acende a escuridão
o ai do samurai
é a coragem de resistir
aos covardes
que destroem o prazer
de (r)existir
o ai do samurai
é a liberdade da infância
pintando sua vingança
na cara-pálida do tempo
covarde
o ai do samurai
é o silêncio que povoa
nossa vontade de mudar
a cara desse país:
com arte
porrada
& poesia
o ai do samurai
não silencia!
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
Estante do tempo
A Nova República
Farias de Carvalho (1930-1997)
Vou começar a construir meu mundo.
Este, que não suporto, me asfixia.
Os olhos já se cansam de assistir
à mecânica dança dos bonecos.
Um botão, e o sorriso encomendado
rasga a máscara fria do fantoche.
Outros botões, e seguem-se outros gestos
na estúpida intenção preconcebida.
Por isto eu quero um mundo. Hei de cercá-lo
com a alta tensão da sensibilidade
da Poesia inquilina do meu sangue.
Nele entrarão apenas os eleitos,
os que apanham as estrelas como rosas
e as dependuram, vivas, sobre o peito!
Farias de Carvalho (1930-1997)
Vou começar a construir meu mundo.
Este, que não suporto, me asfixia.
Os olhos já se cansam de assistir
à mecânica dança dos bonecos.
Um botão, e o sorriso encomendado
rasga a máscara fria do fantoche.
Outros botões, e seguem-se outros gestos
na estúpida intenção preconcebida.
Por isto eu quero um mundo. Hei de cercá-lo
com a alta tensão da sensibilidade
da Poesia inquilina do meu sangue.
Nele entrarão apenas os eleitos,
os que apanham as estrelas como rosas
e as dependuram, vivas, sobre o peito!
domingo, 23 de novembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Dor elegante
Paulo Leminski (1944-1989)
um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante
carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha
ópios edens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra
sábado, 22 de novembro de 2008
Poesia em tradução
Ode XI (Livro I)
Horácio (65-8 a.C.)
Não indagues, Leucônoe, ímpio é saber
a duração da vida
que os deuses decidiram conceder-nos,
nem consultes os astros babilônios:
melhor é suportar
tudo o que acontecer.
Quer Júpiter te dê muitos invernos,
quer seja o derradeiro
este que vem fazendo o mar Tirreno
cansar-se contra as rochas,
mostra-te sábia, clarifica os vinhos,
corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.
Enquanto conversamos,
foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no amanhã.
(Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos)
Horácio (65-8 a.C.)
Não indagues, Leucônoe, ímpio é saber
a duração da vida
que os deuses decidiram conceder-nos,
nem consultes os astros babilônios:
melhor é suportar
tudo o que acontecer.
Quer Júpiter te dê muitos invernos,
quer seja o derradeiro
este que vem fazendo o mar Tirreno
cansar-se contra as rochas,
mostra-te sábia, clarifica os vinhos,
corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.
Enquanto conversamos,
foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no amanhã.
(Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos)
sexta-feira, 21 de novembro de 2008
Os limbos
Donaldo Mello
... os rubros olhos do leão
deixarão escorrer lágrimas de ouro
William Blake
Lentamente vou ouvindo
a melodia da verdade
interior. E a mão da Luz
conduz-me ao caminho.
À busca de outroamanhã,
desconhecido, inexistido
mas radioso e diáfano.
Puro de silêncio. Oração.
De mim esquecido, puro,
aventureiro nauta; elevação.
Cheio alforje.
Novamente
a dar as velas.
Iluminação.
“No vão da
sombra
que me foge”(*)
(*) Edmond Vandercammen, La porte sans mémoire, in A poética do devaneio, de Gaston Bachelard, p. 103.
... os rubros olhos do leão
deixarão escorrer lágrimas de ouro
William Blake
Lentamente vou ouvindo
a melodia da verdade
interior. E a mão da Luz
conduz-me ao caminho.
À busca de outroamanhã,
desconhecido, inexistido
mas radioso e diáfano.
Puro de silêncio. Oração.
De mim esquecido, puro,
aventureiro nauta; elevação.
Cheio alforje.
Novamente
a dar as velas.
Iluminação.
“No vão da
sombra
que me foge”(*)
(*) Edmond Vandercammen, La porte sans mémoire, in A poética do devaneio, de Gaston Bachelard, p. 103.
quinta-feira, 20 de novembro de 2008
Makunaíma recria o mundo
Jorge Tufic
Depois das águas grandes,
o mundo ficou seco e oco.
Pedaços de carvão ficaram rolando no solo,
como ecos de pedras,
vozes de rio, gemidos de fogo.
Então, Makunaíma acordou.
E do barro de sua vigília
retirou aquele homem, sua forma de barro,
seu peito cavado.
No outro lado de Roraima
seus feitos continuaram.
Homens e mulheres foram sendo mudados
em rochas, antas e javalis.
Perto de Koimelemong, um cervo
mergulha na terra a cabeça-de-pedra.
Sobre uma grande onda na Serra de Aruaiang,
pousa uma cesta de luar.
A Serra do Mel parece conduzir
um silêncio de aragem
e vai sem ter vindo.
Muitas dessas pedras se elevam
no país dos ingleses, assim como peixes
e uma cesta que imita, por baixo,
um perfil de mulher.
A savana da Serra de Mairani
são braços, pernas e cabeça
de um ladrão de urucu.
Aí também se entreabrem umas nádegas de pedra.
Cachoeiras acima,
o movimento dos peixes adentra na rocha.
Uma pedra chamada Mutum
canta como este
quando alguém vai morrer.
Por um oco de salto,
vespas gigantes construíram suas casas
e zumbem na base mais profunda da serra.
Aqui fora, Makunaíma dá os últimos retoques
nos bichos domésticos.
Depois disso ele deita na terra molhada
e se deixa esvair em milhares de seres
que nadam para o rio.
Depois das águas grandes,
o mundo ficou seco e oco.
Pedaços de carvão ficaram rolando no solo,
como ecos de pedras,
vozes de rio, gemidos de fogo.
Então, Makunaíma acordou.
E do barro de sua vigília
retirou aquele homem, sua forma de barro,
seu peito cavado.
No outro lado de Roraima
seus feitos continuaram.
Homens e mulheres foram sendo mudados
em rochas, antas e javalis.
Perto de Koimelemong, um cervo
mergulha na terra a cabeça-de-pedra.
Sobre uma grande onda na Serra de Aruaiang,
pousa uma cesta de luar.
A Serra do Mel parece conduzir
um silêncio de aragem
e vai sem ter vindo.
Muitas dessas pedras se elevam
no país dos ingleses, assim como peixes
e uma cesta que imita, por baixo,
um perfil de mulher.
A savana da Serra de Mairani
são braços, pernas e cabeça
de um ladrão de urucu.
Aí também se entreabrem umas nádegas de pedra.
Cachoeiras acima,
o movimento dos peixes adentra na rocha.
Uma pedra chamada Mutum
canta como este
quando alguém vai morrer.
Por um oco de salto,
vespas gigantes construíram suas casas
e zumbem na base mais profunda da serra.
Aqui fora, Makunaíma dá os últimos retoques
nos bichos domésticos.
Depois disso ele deita na terra molhada
e se deixa esvair em milhares de seres
que nadam para o rio.
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
a casa perscrutada – sala
Zemaria Pinto
Território traduzido
em ícones improváveis
no céu inferno diário
O olhar do Cristo cubista
impõe-se ao campo do olhar
de quem navega por cá.
O Cristo dilacerado
nosotros desesperados
a crucial via-crúcis
refletida nas palavras
e nos gestos refletida
num movimento a um só tempo
espiral e circular
Sob o Cristo comungamos
a rotineira heresia
da fome transfigurada
O homem sentado ao bar
andrógino olhar vazado
retrato da solidão
combina ametista e fogo
angústia, fuga e paixão.
Mais acima a ironia
das cúpulas invertidas
cópulas apodrecidas
símbolos disseminados
pela pálida parede
Em silêncio nos quedamos
em provisório transporte
a míticos promontórios
Noutra margem, parelhados
herméticos aparelhos
conectam a casa ao mundo
sob os olhos de um guerreiro
identidade e desejo
da implausível liberdade.
Ele olha para o Cristo
o Cristo para ele olha
em algum ponto infinito
esses olhares se chocam
No céu inferno diário
os ícones se traduzem
na improvável geografia
Território traduzido
em ícones improváveis
no céu inferno diário
O olhar do Cristo cubista
impõe-se ao campo do olhar
de quem navega por cá.
O Cristo dilacerado
nosotros desesperados
a crucial via-crúcis
refletida nas palavras
e nos gestos refletida
num movimento a um só tempo
espiral e circular
Sob o Cristo comungamos
a rotineira heresia
da fome transfigurada
O homem sentado ao bar
andrógino olhar vazado
retrato da solidão
combina ametista e fogo
angústia, fuga e paixão.
Mais acima a ironia
das cúpulas invertidas
cópulas apodrecidas
símbolos disseminados
pela pálida parede
Em silêncio nos quedamos
em provisório transporte
a míticos promontórios
Noutra margem, parelhados
herméticos aparelhos
conectam a casa ao mundo
sob os olhos de um guerreiro
identidade e desejo
da implausível liberdade.
Ele olha para o Cristo
o Cristo para ele olha
em algum ponto infinito
esses olhares se chocam
No céu inferno diário
os ícones se traduzem
na improvável geografia
terça-feira, 18 de novembro de 2008
Todo corpo
Cândida Alves
Todo corpo
toda vida explica
nos seus rastros
sempre uma notícia
escrita nos seus traços
todos os anseios
no mover dos braços
todo corpo
traz um benefício
sobre suas curvas
e algum sacrifício
com lembranças turvas
marca suas dobras
todo corpo amado
ou desolado chora
toda sua virtude
e seu pecado aflora
todo corpo
mostra seus segredos
e encontra outros medos
quando abre os olhos
todo corpo
uma mente oculta
todo corpo é alma
enquanto vida pulsa
Todo corpo
toda vida explica
nos seus rastros
sempre uma notícia
escrita nos seus traços
todos os anseios
no mover dos braços
todo corpo
traz um benefício
sobre suas curvas
e algum sacrifício
com lembranças turvas
marca suas dobras
todo corpo amado
ou desolado chora
toda sua virtude
e seu pecado aflora
todo corpo
mostra seus segredos
e encontra outros medos
quando abre os olhos
todo corpo
uma mente oculta
todo corpo é alma
enquanto vida pulsa
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
Estante do tempo
Coração
Jonas da Silva (1880-1947)
Meu coração é um velho alpendre em cuja
Sombra se escuta pela noite morta
O som de um passo e o gonzo de uma porta
Que a umidade dos tempos enferruja.
Quem vai passando pela estrada torta
Que leva ao alpendre, dessa estrada fuja!
Lá só se encontra a fúnebre coruja
E a Dor, que à prece o caminhante exorta.
Se um dia, abrindo o casarão sombrio,
Um abrigo buscasses contra o frio
E entrasses, doce criatura langue,
Fugirias tremente, vendo a um lado,
A Crença morta, o Sonho estrangulado
E o cadáver do Amor banhado em sangue!
Jonas da Silva (1880-1947)
Meu coração é um velho alpendre em cuja
Sombra se escuta pela noite morta
O som de um passo e o gonzo de uma porta
Que a umidade dos tempos enferruja.
Quem vai passando pela estrada torta
Que leva ao alpendre, dessa estrada fuja!
Lá só se encontra a fúnebre coruja
E a Dor, que à prece o caminhante exorta.
Se um dia, abrindo o casarão sombrio,
Um abrigo buscasses contra o frio
E entrasses, doce criatura langue,
Fugirias tremente, vendo a um lado,
A Crença morta, o Sonho estrangulado
E o cadáver do Amor banhado em sangue!
domingo, 16 de novembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Bocage (1765-1805)
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!
Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos Céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura:
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!
Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui... A santidade
Manchei!... Oh! se me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na Eternidade!
sábado, 15 de novembro de 2008
Poesia em tradução
Ariel
Sylvia Plath (1932-1963)
Estancamento no escuro
E então o fluir azul e insubstâncial
De montanha e distância.
Leoa do Senhor
como nos unimos
Eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco
Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo
Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas.
E então
Ondulo como trigo, um brilho de mares.
O grito da criança
Escorre pela parede.
E eu
Sou a flecha,
O orvalho que voa,
Suicida, unido com o impulso
Dentro do olho
Vermelho, caldeirão da manhã.
(Trad.: Ana Cândida Perez e Ana Cristina César)
Sylvia Plath (1932-1963)
Estancamento no escuro
E então o fluir azul e insubstâncial
De montanha e distância.
Leoa do Senhor
como nos unimos
Eixo de calcanhares e joelhos!... O sulco
Afunda e passa, irmão
Do arco tenso
Do pescoço que não consigo dobrar.
Sementes
De olhos negros lançam escuros
Anzóis...
Negro, doce sangue na boca,
Sombra,
Um outro vôo
Me arrasta pelo ar...
Coxas, pêlos;
Escamas e calcanhares.
Branca
Godiva, descasco
Mãos mortas, asperezas mortas.
E então
Ondulo como trigo, um brilho de mares.
O grito da criança
Escorre pela parede.
E eu
Sou a flecha,
O orvalho que voa,
Suicida, unido com o impulso
Dentro do olho
Vermelho, caldeirão da manhã.
(Trad.: Ana Cândida Perez e Ana Cristina César)
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Ana Cândida Perez,
Ana Cristina César,
Sabado,
Sylvia Plath
sexta-feira, 14 de novembro de 2008
O Soldador de Palavras
Majela Colares
Fazer poemas é soldar palavras,
fundir o signo – literal sentido –
do verbo frio, transformado em chama,
aceso verso, pensado e medido
sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema,
fuga do verbo não mais definido.
Criado o texto, com idéia e tinta,
forma e figura na linguagem extinta,
quebrando regras de comuns fonemas.
A idéia é fogo. Fogo... o verbo aquece.
A tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas... por fim, poemas.
Fazer poemas é soldar palavras,
fundir o signo – literal sentido –
do verbo frio, transformado em chama,
aceso verso, pensado e medido
sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema,
fuga do verbo não mais definido.
Criado o texto, com idéia e tinta,
forma e figura na linguagem extinta,
quebrando regras de comuns fonemas.
A idéia é fogo. Fogo... o verbo aquece.
A tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas... por fim, poemas.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
Geografia provinciana
Astrid Cabral
Manaus um ponto perdido
no mapa. Ali, desgarrada
entre paredes de verde.
Mas iam e vinham navios
trazendo franjas do mundo.
Europa e Península Ibérica
surgiam das próprias pedras
das avenidas e esquinas:
a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
Também no livro de Dante
que o sapateiro traduzia
rodeado de crianças
a mostrar-lhes céus e infernos
toda a celeste geografia.
Seu Genaro, já grisalho
fundava o reino de Espanha
atrás de barris de vinho
tinas mantas de banha
vinagres azeites doces
réstias de alho e cebola.
Seu Carvalho, o português
vendia bolos e broas
à vontade do freguês
mais rala-rala e refrescos
de guaraná e groselha.
Síria China e Argentina
vinham na gorda maleta
do turco mais seus bigodes:
damascos crepes Chambleys.
A França era ali na Madame
Marie e no Aux Cent Mille Paletots
a moda do dernier cri.
E passavam barbadianas
sob chapelões de palha
ao sol dos dias em brasa.
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!
O mundo estava em Manaus
Manaus estava no mundo.
Manaus um ponto perdido
no mapa. Ali, desgarrada
entre paredes de verde.
Mas iam e vinham navios
trazendo franjas do mundo.
Europa e Península Ibérica
surgiam das próprias pedras
das avenidas e esquinas:
a Itália na taberna
de seu Vicenzo Arenaro.
Também no livro de Dante
que o sapateiro traduzia
rodeado de crianças
a mostrar-lhes céus e infernos
toda a celeste geografia.
Seu Genaro, já grisalho
fundava o reino de Espanha
atrás de barris de vinho
tinas mantas de banha
vinagres azeites doces
réstias de alho e cebola.
Seu Carvalho, o português
vendia bolos e broas
à vontade do freguês
mais rala-rala e refrescos
de guaraná e groselha.
Síria China e Argentina
vinham na gorda maleta
do turco mais seus bigodes:
damascos crepes Chambleys.
A França era ali na Madame
Marie e no Aux Cent Mille Paletots
a moda do dernier cri.
E passavam barbadianas
sob chapelões de palha
ao sol dos dias em brasa.
E um fugitivo das Guianas
testemunhava a Ilha do Diabo!
O mundo estava em Manaus
Manaus estava no mundo.
quarta-feira, 12 de novembro de 2008
a casa perscrutada – escrivaninha
Zemaria Pinto
a escrivaninha é um móvel
num ponto inútil da sala
(debaixo de uma janela)
sua pesada arquitetura
torna-a feia agressiva
aos olhos acostumados
à transparência e leveza
dos outros móveis da casa
nauta de outras geografias
traz tatuada na tampa
os vestígios indeléveis
de batalhas e naufrágios
ais de amor assassinatos
três conchas feito gavetas
são depósitos de idéias
onde traças invisíveis
deixam traços furiosos
nas folhas esmaecidas
composições esquecidas
aos poucos são resgatadas
do túmulo violado
já nem tudo reconheço
mas sei que me fazem parte
anêmicas cançonetas
sonetos ossificados
noturnos anoitecidos
baladas banalizadas
delírios delituosos
poemas velhos poemas
refletindo no crepúsculo
memórias do meu desejo
a escrivaninha é um móvel
num ponto inútil da sala
(debaixo de uma janela)
sua pesada arquitetura
torna-a feia agressiva
aos olhos acostumados
à transparência e leveza
dos outros móveis da casa
nauta de outras geografias
traz tatuada na tampa
os vestígios indeléveis
de batalhas e naufrágios
ais de amor assassinatos
três conchas feito gavetas
são depósitos de idéias
onde traças invisíveis
deixam traços furiosos
nas folhas esmaecidas
composições esquecidas
aos poucos são resgatadas
do túmulo violado
já nem tudo reconheço
mas sei que me fazem parte
anêmicas cançonetas
sonetos ossificados
noturnos anoitecidos
baladas banalizadas
delírios delituosos
poemas velhos poemas
refletindo no crepúsculo
memórias do meu desejo
terça-feira, 11 de novembro de 2008
Raízes
Regina Melo
Brota sobre minhas raízes
a fertilidade das canções
circula sobre meu ventre de barro
o solo que cerceia o sol
a raiz prende meu corpo à terra
aterro os sonhos que no ar habitam
meu habitat eu planto por onde passo
e passo às vezes por onde ficam.
Brota sobre minhas raízes
a fertilidade das canções
circula sobre meu ventre de barro
o solo que cerceia o sol
a raiz prende meu corpo à terra
aterro os sonhos que no ar habitam
meu habitat eu planto por onde passo
e passo às vezes por onde ficam.
segunda-feira, 10 de novembro de 2008
Estante do tempo
Enquanto a lua for calada e branca
Ernesto Penafort (1936-1992)
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, este esquisito,
este invisível vulto, apenas visto
quando o vento, de leve açoita as folhas.
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, apenas visto
quando um raio de sol morre na lágrima
que se despede de uma folha verde.
eu serei sempre assim, apenas sombra,
apenas visto quando a voz de um gesto
colhe no bosque alguma flor azul.
apenas visto quando em fundo azul
voar a garça (o meu adeus ao mundo?),
enquanto a lua for calada e branca.
Ernesto Penafort (1936-1992)
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, este esquisito,
este invisível vulto, apenas visto
quando o vento, de leve açoita as folhas.
enquanto a lua for calada e branca
eu serei sempre o mesmo, apenas visto
quando um raio de sol morre na lágrima
que se despede de uma folha verde.
eu serei sempre assim, apenas sombra,
apenas visto quando a voz de um gesto
colhe no bosque alguma flor azul.
apenas visto quando em fundo azul
voar a garça (o meu adeus ao mundo?),
enquanto a lua for calada e branca.
domingo, 9 de novembro de 2008
Minha pátria é minha língua
Budismo moderno
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
Augusto dos Anjos (1884-1914)
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógama cápsula se esbroa
Ao contato de bronca destra forte!
Dissolva-se, portanto, minha vida
Igualmente a uma célula caída
Na aberração de um óvulo infecundo;
Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!
sábado, 8 de novembro de 2008
Poesia em tradução
Blusa fátua
Vladimir Maiakóvski (1893-1930)
Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.
Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"
Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!
Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!
(Trad.: Augusto de Campos)
Vladimir Maiakóvski (1893-1930)
Costurarei calças pretas
com o veludo da minha garganta
e uma blusa amarela com três metros de poente.
pela Niévski do mundo, como criança grande,
andarei, donjuan, com ar de dândi.
Que a terra gema em sua mole indolência:
"Não viole o verde das minhas primaveras!"
Mostrando os dentes, rirei ao sol com insolência:
"No asfalto liso hei de rolar as rimas veras!"
Não sei se é porque o céu é azul celeste
e a terra, amante, me estende as mãos ardentes
que eu faço versos alegres como marionetes
e afiados e precisos como palitar dentes!
Fêmeas, gamadas em minha carne, e esta
garota que me olha com amor de gêmea,
cubram-me de sorrisos, que eu, poeta,
com flores os bordarei na blusa cor de gema!
(Trad.: Augusto de Campos)
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Canção dissonante
Renato Augusto Farias de Carvalho
Tenho guardadas as escassas
horas
e as visões solenes
de Coimbra, do Porto,
os desenhos peninsulares
e sopros do Tejo
nas veias ibéricas do norte.
Trago o fado
no ardente peito
faço-me inteiro
ternura
sina e
saudade.
Estou cercado de ti, Lisboa dos
meus presságios. Ergo daqui meu
vinho verde
- para ver-te -
bem ao pé da Baixa
e seguir a Belém; depois
Faro, Óbidos e Santarém.
Oculto-me em trapos e versos
para abraçar-te, incólume Portugal do sol
vespertino. E deito-me, no leito de alvas
pedras, no mar da Ericeira.
Tenho guardadas as escassas
horas
e as visões solenes
de Coimbra, do Porto,
os desenhos peninsulares
e sopros do Tejo
nas veias ibéricas do norte.
Trago o fado
no ardente peito
faço-me inteiro
ternura
sina e
saudade.
Estou cercado de ti, Lisboa dos
meus presságios. Ergo daqui meu
vinho verde
- para ver-te -
bem ao pé da Baixa
e seguir a Belém; depois
Faro, Óbidos e Santarém.
Oculto-me em trapos e versos
para abraçar-te, incólume Portugal do sol
vespertino. E deito-me, no leito de alvas
pedras, no mar da Ericeira.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
O poeta veste-se
Luiz Bacellar
Com seu paletó de brumas
e suas calças de pedra,
vai o poeta.
E sobre a cambraia fina
da camisa de neblina,
o arco-íris em gravata
vai atado em nó singelo.
(Um plátano, sobre a prata
da água tranqüila do lago,
se debruça só por vê-lo).
Ele leva sobre os ombros
a cachoeira do lago
(cachecol à moda russa)
levemente debruada
de um fino raio de sol.
Vai o poeta
a caminhar pelas serras.
(pelos montes friorentos
mal se espreguiça a manhã)
com seu pull over cinzento
(feito com lã das colinas)
com seus sapatos de musgo
(camurça verde dos muros)
com seu chapéu de abas largas
(grande cumulus escuro).
Mas algo ainda lhe falta
para a elegância completa:
súbito pára, se curva,
num gesto sóbrio e perfeito,
um breve floco de nuvens
colhe e prende na lapela.
Com seu paletó de brumas
e suas calças de pedra,
vai o poeta.
E sobre a cambraia fina
da camisa de neblina,
o arco-íris em gravata
vai atado em nó singelo.
(Um plátano, sobre a prata
da água tranqüila do lago,
se debruça só por vê-lo).
Ele leva sobre os ombros
a cachoeira do lago
(cachecol à moda russa)
levemente debruada
de um fino raio de sol.
Vai o poeta
a caminhar pelas serras.
(pelos montes friorentos
mal se espreguiça a manhã)
com seu pull over cinzento
(feito com lã das colinas)
com seus sapatos de musgo
(camurça verde dos muros)
com seu chapéu de abas largas
(grande cumulus escuro).
Mas algo ainda lhe falta
para a elegância completa:
súbito pára, se curva,
num gesto sóbrio e perfeito,
um breve floco de nuvens
colhe e prende na lapela.
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
a casa perscrutada – biblioteca
Zemaria Pinto
as paredes de papel
temperadas pelo tempo
são fortaleza de aço
forjado em fogo e silêncio
agrupados por assuntos
cada conjunto de livros
é um mar particular
com seus ventos, tempestades
seus seres imaginários
monstros, homens, potestades
poesia, teatro, ensaio
história, filosofia
romance, conto, novela
didática, teoria
cinema, artes, quadrinhos
música, fotografia
as chamas aprisionadas
entre as páginas dos livros
são metáforas perenes
imagem, símbolo, mito
semeadura de paixões
fronteiras com o infinito
um cômodo de papel
temperado pelo tempo
é território de sonhos
prazeres do pensamento
as paredes de papel
temperadas pelo tempo
são fortaleza de aço
forjado em fogo e silêncio
agrupados por assuntos
cada conjunto de livros
é um mar particular
com seus ventos, tempestades
seus seres imaginários
monstros, homens, potestades
poesia, teatro, ensaio
história, filosofia
romance, conto, novela
didática, teoria
cinema, artes, quadrinhos
música, fotografia
as chamas aprisionadas
entre as páginas dos livros
são metáforas perenes
imagem, símbolo, mito
semeadura de paixões
fronteiras com o infinito
um cômodo de papel
temperado pelo tempo
é território de sonhos
prazeres do pensamento
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Trabalho de parto
Dedé Rodrigues
brotam de meu ventre
versos repulsivos
abortos involuntários
criações de assombro
incham-me o sexo
secam-me as tetas
deixando em seu rastro
nessa casa maculada
a solidão do casulo
fina casca enegrecida
hábitat de sonhos
brotam de meu ventre
versos repulsivos
abortos involuntários
criações de assombro
incham-me o sexo
secam-me as tetas
deixando em seu rastro
nessa casa maculada
a solidão do casulo
fina casca enegrecida
hábitat de sonhos
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
Estante do tempo
O Raio Verde
Octavio Sarmento (1879-1926)
Os mares a sulcar, é vezo antigo, quando
A nau serena vai e o sol abrasa o poente,
Deter-se junto à borda, emocionada, a gente
Um veio de esmeralda entre as nuvens buscando...
Das ondas ao marulho, eu também, docemente
Dos sonhos meus seguindo o fantasioso bando,
Claros céus perscrutei largos dias, pensando
Fitar a doce luz que se esvai num repente.
E hoje, afinal, chegado ao termo da jornada,
Hoje que, enfim, a nau o último porto alcança,
Minh’alma o desengano horrível trás prostrada,
E o triste coração de mil pesares junca:
Ai, nunca pude ver o signo da Esperança,
Ai, nunca pude ver o Raio Verde, nunca!
Octavio Sarmento (1879-1926)
Os mares a sulcar, é vezo antigo, quando
A nau serena vai e o sol abrasa o poente,
Deter-se junto à borda, emocionada, a gente
Um veio de esmeralda entre as nuvens buscando...
Das ondas ao marulho, eu também, docemente
Dos sonhos meus seguindo o fantasioso bando,
Claros céus perscrutei largos dias, pensando
Fitar a doce luz que se esvai num repente.
E hoje, afinal, chegado ao termo da jornada,
Hoje que, enfim, a nau o último porto alcança,
Minh’alma o desengano horrível trás prostrada,
E o triste coração de mil pesares junca:
Ai, nunca pude ver o signo da Esperança,
Ai, nunca pude ver o Raio Verde, nunca!
domingo, 2 de novembro de 2008
Minha pátria é minha língua
O cacto
Manuel Bandeira (1886-1968)
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
Manuel Bandeira (1886-1968)
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas...
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.
O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas
[privou a cidade de iluminação e energia:
- Era belo, áspero, intratável.
sábado, 1 de novembro de 2008
Poesia em tradução
O torso arcaico de Apolo
Rainer Maria Rilke (1875-1926)
Não conhecemos sua cabeça inaudita
onde as pupilas amadureciam. Mas
seu torso brilha ainda como um candelabro
no qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
detém-se e brilha. Do contrário não poderia
seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
dos rins poderia chegar um sorriso
até aquele centro, donde o sexo pendia.
De outro modo, erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.
E nem explodiria para além de todas as fronteiras
tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
que não te mire: precisas mudar de vida.
(Trad.: Paulo Quintela)
Rainer Maria Rilke (1875-1926)
Não conhecemos sua cabeça inaudita
onde as pupilas amadureciam. Mas
seu torso brilha ainda como um candelabro
no qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado
detém-se e brilha. Do contrário não poderia
seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
dos rins poderia chegar um sorriso
até aquele centro, donde o sexo pendia.
De outro modo, erguer-se-ia esta pedra breve e mutilada
sob a queda translúcida dos ombros.
E não tremeria assim, como pele selvagem.
E nem explodiria para além de todas as fronteiras
tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
que não te mire: precisas mudar de vida.
(Trad.: Paulo Quintela)
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