Amigos do Fingidor

sábado, 31 de janeiro de 2009

Diego Velázquez (1599-1660)

Venus at her mirror.

Poesia em tradução

Elegia: indo para o leito
John Donne (1572-1631)

Vem, Dama, vem, que eu desafio a paz;
Até que eu lute, em luta o corpo jaz.
Como o inimigo diante do inimigo,
Canso-me de esperar se nunca brigo.
Solta esse cinto sideral que vela,
Céu cintilante, uma área ainda mais bela.
Desata esse corpete constelado,
Feito para deter o olhar ousado.

Entrega-te ao torpor que se derrama
De ti a mim, dizendo: hora da cama.
Tira o espartilho, quero descoberto
O que ele guarda, quieto, tão de perto.
O corpo que de tuas saias sai
É um campo em flor quando a sombra se esvai.
Arranca essa grinalda armada e deixa
Que cresça o diadema da madeixa.

Tira os sapatos e entra sem receio
Nesse templo de amor que é o nosso leito.
Os anjos mostram-se num branco véu
Aos homens. Tu, meu anjo, és como o Céu
De Maomé. E se no branco têm contigo
Semelhança os espíritos, distingo:
O que o meu Anjo branco põe não é
O cabelo mas sim a carne em pé.

Deixa que minha mão errante adentre
Atrás, na frente, em cima, em baixo, entre.
Minha América! Minha terra à vista,
Reino de paz, se um homem só a conquista,
Minha Mina preciosa, meu Império,
Feliz de quem penetre o teu mistério!
Liberto-me ficando teu escravo;
Onde cai minha mão, meu selo gravo.

Nudez total! Todo o prazer provém
De um corpo (como a alma sem corpo) sem
Vestes. As jóias que a mulher ostenta
São como as bolas de ouro de Atalanta:
O olho do tolo que uma gema inflama
Ilude-se com ela e perde a dama.
Como encadernação vistosa, feita
Para iletrados, a mulher se enfeita;

Mas ela é um livro místico e somente
A alguns (a que tal graça se consente)
É dado lê-la. Eu sou um que sabe;
Como se diante da parteira, abre-
Te: atira, sim, o linho branco fora,
Nem penitência nem decência agora.
Para ensinar-te eu me desnudo antes:
A coberta de um homem te é bastante.

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Edward Munch (1863-1944)

Self-Portrait with Cigarette.

Réquiem em sol da tarde

Soares Feitosa

“Grita, para ver se alguém te responde”
(Jó, 5,1)

Sim,
a porteira do caminho do rio
ainda era a mesma.

A direção do rio também;
presumo não tenham mudado o rio.

O benjamim, disseram,
morrera na Seca do 93;
arrancaram-no pelo tronco.

Não replantaram sombra,
nem pássaro.

O banco de aroeira,
racharam-no em lenha de fogo;
O curral das vacas,
também racharam-no.

O chiqueiro das ovelhas,
à esquerda da casa
e o dos bodes,
à esquerda do das ovelhas,
sumiram todos.

O batente da porta-da-frente,
e abaixo dele, outro batente,
onde uma pedra,
com um caneco d’água
lavei os pés,
ainda estão lá,
os batentes;
e nos batentes também estavam
meus rastros em riscos de fogo,
que continuam.

Os canários amarelos,
os mofumbos florados,
não os vi;
nem Flor...
que também não vi.

Os armadores da rede,
na sala-da-frente, sim,
estavam no lugar,
outra vez
prontos para rangir.

E daquelas pessoas,
quando perguntei por elas,
fizeram-me um gesto distante.

Perguntei por mim,
ninguém sabia quem era.

Eu disse:
é um conhecido meu que gostava muito
daqui.

Perguntaram-me quem eu era.

Um amigo — disse —,
e fiz um gesto
ao tempo.

Ficaram sentidos por não saberem
nem de mim, nem do “outro”.

Uma criança pequena começou a gritar,
lá dentro.

A mãe correu
para acudir.

Despedi-me
sem dizer palavra.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Paul Cézanne (1839-1906)

Self-portrait with rose background.

Poema do rio Negro, 1

Rogel Samuel

Em 1729 morrem no rio urubu
vinte e oito mil índios
assassinados
Mas eu estou fraco para esta luta
e preparo a fala afiada.
A cozinheira corta o peixe a faca
como o selo que pincela, amara.
Três homens remam montados nas águas.
Oh estou fraco para a luta
preparada selva absoluta.
No caminho vendem os armadores as ilhas
cai a chuva sobre as lajes da tarde
que estou fraco para a luta
preparo o corte a morte
preparo o rio, urubu, orgulho das águas
imprópria para o passeio público
não o passado branco amigo
gesto sobretudo de suas partes
que ali viram morrer 300 malocas
no rio urubu rio negro da morte
o que passa entre o mato aziago
É belo? É limpo? adejam papagaios
entre mil insetos de teia de ouro fino
o rio não esquece
o rio nunca esquece
nunca lava
a hecatombe a fila a corrida

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Henri Matisse (1869-1954)

Le bonheur de vivre.

Onde está a identidade?

Zemaria Pinto
(Para ler ouvindo Noel Rosa, Paulo Vanzolini e Adoniran Barbosa)

Eu não vou forçar a minha voz
pra dizer o que vocês querem ouvir...
Já estou cansado desse papo de índio,
mata, ecologia, filosofia da natureza, preservação
estou ficando até careca

Mas eu não vou ficar careta
entrar nesse papo do Sting
cantar rock'n'roll no Quarup
como se estivesse em Sing-Sing

Eu quero mesmo é dançar embaixo do boi
- quem é Garantido?
Eu quero mesmo é dançar embaixo do boi
- quem é Caprichoso, aqui?

Dez horas da manhã, um sol do cacete
na Praça da Matriz, um pivete cheira-cola
bateu minha mochila
e não havia grana nenhuma
só um cartão de crédito vencido,
uma edição do Capital para estudantes do fundamental,
e o retrato de uma namorada que morreu atropelada
Iracema, meu grande amor...
E minha identidade, foto 3X4
do tempo em que eu tinha cabelos longos
e idéias em curto-circuito
porque eu sou do tempo em que dar um tapinha
baseava-se em cumprimentar um amigo
eu sou do tempo em que o trágico do trágico
era tomar formicida Tatu com guaraná Magistral

Eu não vou forçar a minha voz...

E querem saber do que mais:
no Amazonas, a barbárie e a civilização
se completam, se locupletam
se complementam e se contemplam
sob nuvens de fumaça envelhecida
e o pó e o pó e o pó e o pó do tempo

A civilização anda de carro preto
com uma moto-serra na mão
e toma banho de coliformes fecais na cachoeira do Tarumã
e toma porre de whisky iodado com sanduba de tucumã

A barbárie é a contramão da civilização
que mudou a cor do boto vermelho
e zumbizou o tucuxi
zumbizou, zumbizou, zumbizou o tucuxi....

Eu não vou forçar a minha voz
pra dizer o que vocês querem
e já estão cansados de tanto ouvir...

Iracema, meu grande amor...

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Nicolaes Berchem (1620-1683)

Jupiter notices Callisto.

Confissão

Rosa Clement

Nunca fui de pegar na enxada
ou de ralar mandioca.
Meus pés não trazem as rachas
das mais longas caminhadas.
Minhas costas não se curvaram
ao peso dos paneiros cheios.
Minha pele não conta histórias de sol.

Não pratico a arte de fazer beiju.
De peixe, só sei as manhas de comê-lo.
As águas não acatam minhas remadas,
Pouco entendo sobre o humor do tempo
ou os mistérios da mata.

Ainda assim sou cabocla.
Nasci com a essência da terra
e a resistência de suas raízes.
Sei do prazer de tomar banho de rio,
manejar com jeito uma cuia,
dançar ao som de uma toada,
balançar o amor dentro de uma rede.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Robert Fowler (1853-1926)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Espelho e face
Guimarães de Paula (1932-1996)

Mata-nos o não vermos
no espelho de hoje
a nossa face de ontem.

Flor de alegria ou de mágoa
que outrora nascia de nós
crestou-se (ignota) no tempo.
A cada dia
quanto mais nos conhecemos
deixamos de ser nós mesmos,
dispersados, divididos,
em não sei quantos milhares
de faces dessemelhantes.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Laurent De La Hyre (1606-1656)


 Pastoral landscape.

Minha pátria é minha língua

Soneto
Antônio Nobre (1867-1900)

Ó Virgens que passais, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai !

sábado, 24 de janeiro de 2009

Neroccio de' Landi (1447-1500)

Portrait of a lady.

Poesia em tradução

Esterelidades
Jules Laforgue (1860-1887)

Cauteriza e coagula
Nestas vírgulas
As lagunas vermelhinhas
Dessas Ofélias felinas
Nossas órfãs em folia.

Tarântula de cortinas
Que recria
Sem nenhum rancor de óvulos
Tais Ofélias felinas
Nossas órfãs em folia.

Surdo à brisa dos crepúsculos
Rumo à lua
(Bolha), adeus, inquilinas
Tais Ofélias felinas
Nossas órfãs em folia.

(Trad. Régis Bonvicino)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Joseph Noel Paton (1821-1901)

The Reconciliation of Titania and Oberon.

Janela tridimensional

Leila Miccolis

Quem é vivo sempre aparece;
mas dependendo do morto
ocorre o mesmo processo:
os poetas que eu mais amo
entram sempre em minha casa
pela porta dos seus versos.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Jacob Jordaens (1593-1678)

Diana and Actaeon.

Esquinas

(fragmento)
Marcileudo Barros

Pra quem se acha
Rei ou Rainha
e não vê mais ninguém,
na esquina tem um Rei
e uma Rainha também.
Tem palhaço, trapezista,
homem de aço, equilibrista.
Tem também ilusionista
que pode se transformar
em qualquer tipo da lista.
Pra quem se acha
Rei ou Rainha
e não vê mais ninguém,
a esquina tem surpresas
e sofrimentos também.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Wilhelm Tischbein (1751-1829)

Goethe in der Campagna.

construção/ruínas

Zemaria Pinto

das ruínas

os poemas espalham-se em desordem
feito cadáveres no campo de batalha
a noite os torna invioláveis
mas não esconde sua presença surda
seu odor de enxofre
seu hálito de pedra
sua mineral iniqüidade

da construção

o poema se limita
com a água do rio em movimento
é sempre impreciso o momento
de retê-lo na retina
papel de ar tinta de espuma?
o poema é um barco bêbado
subindo o rio

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Carlo Antonio Procaccini (1555-1605)

Flora.

Germinal

Nelson Castro

Antes do verbo era silêncio
silêncio como significado de enigma
enigma como sentido de mistério.

Fecundado pelo poeta
o silêncio gestava uma semente
semente prenhe de poesia
poesia dádiva de vida.

Quando a semente se rompeu...
Fez-se o verso
quebrou-se o silêncio do universo
e o primeiro canto aconteceu.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Arnold Böcklin (1827-1901)

Venus Anadyomene.

Estante do tempo

Mar da memória
Sebastião Norões (1915-1972)


Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.

O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,

delimitava imprevisíveis rumos,
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.

Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Charles Chaplin (1825-1891)

La ragazza col nido.

Minha pátria é minha língua

Adormecida
Castro Alves (1847-1871)


Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.

'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço de horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.

De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos – beijá-la.

Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...

Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!

E o ramo ora chegava, ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P’ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...

Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
Virgem! – tu és a flor de minha vida!..."

sábado, 17 de janeiro de 2009

Raphael (Raffaello Sanzio) (1483-1520)

The triumph of Galatea.

Poesia em tradução

Arte de Amar
(livro primeiro – fragmento)
Ovídio (43 a.C.-18)


Se acaso existe alguém entre este povo
que da arte de amar nada conheça,
leia o presente livro – a ver se douto
fica nesta matéria que lhe interessa...
Graças à arte é que no mar os barcos
com velas e com remos vão vogando;
graças também a ela vão os carros
mais velozes nas pistas deslizando...

Se Automedonte, a manobrar as rédeas,
nunca pelos demais era vencido,
e se Tífis, à popa das galeras,
da própria Emônia se mostrava digno,
– quem me dera, por mim, ser do Amor
Automedonte e Tífis em conjunto,
para, com estas regras que lhe dou,
toda gente o reger em todo o mundo!

Dizem que Amor é fero, e não duvido
que muitas vezes me há de resistir;
mas brando também, é, por ser menino,
e talvez eu consiga dirigi-lo...
Já de Aquiles o velho preceptor
somente com a cítara o domava:
e, por mais que o temessem em redor,
Aquiles sempre ao velho se inclinava...

Às mãos de Aquiles expirou Heitor;
mas o velho sabia castigá-lo...
Ah! que assim me obedeça o próprio Amor,
que também de uma deusa foi gerado!
E vede como o touro sofre o jugo
do arado que lhe põem no cachaço;
como o freio, por fim, é menos duro
entre os dentes do indômito cavalo!

Igualmente o Amor me há de ceder,
por muito que me fira com seu arco,
por mais que o coração me faça arder
com seus terríveis dardos inflamados!
E quanto mais ferir melhor vai ser:
maiores razões terei para vingar-me!

Não mentirei, ó Febo, assegurando
que por ti esta Arte me foi dada;
nem p’la voz dos pássaros em bando
ela, sem eu saber, me foi ditada;
nem que de Clio eu tenha recebido
(ou de suas irmãs) esta mensagem,
enquanto, nalgum vale mais sombrio,
o meu próprio rebanho pastoreava...
Nada disso direi, porque somente
aquilo o quanto sei o devo à prática.

Graças a ela é que fiquei exp’riente:
eis o preço maior destas palavras!
De verdades, não mais, aqui se trata.
Ó mãe do Amor, secunda o meu intento!
E vós, longe daqui, ó finas faixas
que sempre do pudor sois ornamento!
E tu, também, ó longo véu que tapas
das matronas os pés, vai-te no vento!

Eu só a quem é livre me dirijo:
apenas me dirijo a quem não tema
os prazeres mais a furto concedidos...
Não tem pois nenhum mal este poema.

(Trad. Natália Correia e David Mourão-Ferreira)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Nicolas de Largillière (1656-1746)

Retrato de Voltaire.

Ainda me viro

Alice Ruiz

ainda me viro
e me vejo
pronta a te chamar
a te contar
que aprendi hoje
coisas que você soube

ainda te vejo
em cada bicho
em cada pensamento
me surpreendo olhando
com teus olhos de pesquisa
e o que vejo
vira beleza

ainda te sinto
em tudo que permanece
como se tua pressa
de vida que se extingue
ficasse um pouco em tudo
ainda

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Alessandro Allori (1535-1607)

Vênus e Cupido.

A magia da arribação

Almir Diniz
Ao poeta Zemaria Pinto, cultor dos bens da Natureza

O passaredo chega, vem trissando,
buscando o arroz nativo, pendoado,
nas restingas, onde o enxame alvoroçado
colhe o néctar, na fonte, voejando.

Antes da dieta o bando, asas ruflando,
faz escala na praça – vem cansado! –
a arribação é cósmica! – do outro lado
do mundo há muito frio e está nublado.

Vede o tremor nas fímbrias da galhada
e o fremir dos remígios? – a nortada
tange as penas orladas de neblina.

A arribação, sabeis? é piracema,
alada: é inspiração! luz! um poema
de coletivo amor – lição divina!...

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Rosario Andrade (1973)

Perseu e Andromeda.

O Poeta em preto-e-branco

Zemaria Pinto
Para Carlos Drummond de Andrade
O homem atrás do bigode
vai assim, meio de lado;
será que lhe pesam os óculos
ou o colarinho engomado?

O homem calvo e magro que passeia
com passos apressados na calçada
da praia do Arpoador olha assustado
a moça que ondula a sua frente
a bordo de um minúsculo maiô.

Nas mãos ossudas,
um livro, uma capanga, um guarda-chuva
vão sempre à frente
dos óculos e do bigode.

Para onde vai o homem
na tarde talvez azul?

Vai amar? Vai orar? Vai transgredir?

Pelo jeito ensimesmado,
o homem vai trabalhando,
com palavras vai lutando,
corpo a corpo, todo o tempo,
surdamente penetrando
no seu reino das palavras.

As pessoas por quem passa
não lhe reparam presença;
passam passam – simplesmente
ele também, nem aí...

Será o homem transparente,
um invisível fantasma,
ou um efeito especial
do tosco filme que eu vi?

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Eugène Amaury-Duval (1808-1885)

Madame de Loynes.

Aguardo todas as previsões

Ana Célia Ossame

Aguardo todas as previsões.
Translúcida observo
dezenas de pessoas
interessadas num artigo de lixo.
É a fome de ser estrela.
Passados os minutos escorro de desejo
e entre um gole e outro de beijos molhados
sem constrangimento,
apago as luzes dos olhos
e acendo as da paixão.
E lá se vai a culpa de ser mulher.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

François Boucher (1703-1770)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

A Ronda dos cisnes
Américo Antony (1895-1970)

A memória de Heliodoro Balbi
O lago acorda. E a lua se insinua
Entre o palmar que aljôfares desata.
Há um silêncio de cisma na alva lua...
Passam os cisnes... são gôndolas de prata.

O lago é rosa. A aurora ainda mais nua
Abre as carnes de anêmona ao sol louro...
Há um fervor de volúpia que flutua...
Centelham praias... passam os cisnes de ouro...

O lago é rubro. O sol no poente escalda.
É a glória em gozo extremo, ardente exangue...
Safira é o céu. A selva é de esmeralda.
A água é rubi... passam os cisnes de sangue...

Lago violeta – há uma queixa na bruma
Da distância na mágoa e na ansiedade...
É o crepúsculo abrindo em cada espuma
O lilás... passam os cisnes da saudade...

O lago dorme... mas, ferido de açoite
Das trevas, que os relâmpagos percorrem...
Os cisnes voltam negros como a noite,
Cantam na solidão da noite... e morrem.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Edward John Poynter (1836-1919)

The Siren.

Minha pátria é minha língua

Motivo
Cecília Meireles (1901-1964)




Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

sábado, 10 de janeiro de 2009

William Bouguereau (1825-1905)

Dante et Virgile au Enfers.

Poesia em tradução

A porta do Inferno em 3 versões
(A Divina Comédia - Inferno - Canto III - fragmento)

Dante Alighieri (1265-1321)

“Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada.
Moveu Justiça o Autor meu sempiterno,
Formado fui por divinal possança,
Sabedoria suma e amor supremo.
No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”

(Trad. Xavier Pinheiro)

“Por mim vai-se à cidade que é dolente,
por mim se vai até a eterna dor,
por mim se vai entre a perdida gente.
Moveu justiça o meu supremo autor:
divina potestade fez-me e tais
a suma sapiência, o primo amor.
Antes de mim não houve cousas mais
do que as eternas e eu eterna duro.
Deixai toda a esperança, vós que entrais.”

(Trad. Vasco Graça Moura)

“Por mim se vai ao círculo dolente; por mim se vai ao sofrimento eterno; Por mim se vai à perdida gente. Justiça moveu o meu alto fautor; Criou-me a Suprema Potestade, Suma Sapiência, Primeiro Amor. Antes, foram criadas apenas coisas eternas; eu, eternamente existo. Renunciai às esperanças, vós que entrais.”

(Trad. Hernani Donato)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Jacques-Louis David (1748-1825)

The Intervention of the Sabine Women.

No caminho, com Maiakóvski

Eduardo Alves da Costa

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakósvki.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas amanhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas no tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares,
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo.
Por temor, aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita - MENTIRA!

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867)

L'apothéose d'Homère.

As portas do rio foram abertas

Milton Hatoum

As portas do rio foram abertas
e vazaram peixes, caboclos, ubás.
Remar tornou-se verbo estático.
O tempo ancorou no raso
E o verde se decifrou.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Katsushika Hokusai (1760-1849)

The great wave off Kanagawa.

a leminski à leminski

Zemaria Pinto

o cara por trás do bigode
é um bandido
um desvairado
um desvalido
é um profeta

o cara por trás do bigode
é menos que um monge
menos que um samurai
menosmenos que a besta dos pinheirais
é um poeta

náufrago verbo verso bicho
erma palavra lavra incompleta
um relaxo no capricho

o cara
é uma experiência estética

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Louis-Michel van Loo (1707-1771)

Retrato de Diderot.

Sangra a vida

Rita Alencar e Silva

Sangra vida
Morte estanca
Sonhos banhados
De dor e agonia
Algoz em fúria
Rouba alegria
Rompe silêncio
Num disparo feroz.

Sangra vida
Passada ao avesso
Na escuridão do medo
Meu peito é negro
Feito em cruz aos céus
Pedindo razão
De tanto sangrar
De tanto humilhar
De tanto esperar.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Antonio Maria Esquivel (1806-1857)

Venus Anadyomene.

Estante do tempo

Pentesilea
Raimundo Monteiro (1882-1932)
A Raymundo Moraes

Foges... No encalço teu açula-se a matilha...
Rompe azinhaga e sebe, e pula, milha a milha,
Sobre vergéis de timo e menta, sem cessar,
Farejando o teu cheiro espalhado no ar!

Cheiro de timo e menta – ó gáudio da matilha
Correndo no clarão do teu rastro a ladrar!

Os espelhos dos vaus partindo na carreira,
Gobelinos do bosque e alfombras da clareira
Rasgando, em alarido, atrás de ti se lança
A esvelteza veloz dos galgos da Esperança

Relinchos de corcel em afoita carreira...
Foges... Não tomarás a brida a essa esquivança?

Susta o galope infrene à borda flórea e a pique
Do Amor – que o teu corcel, nitrindo, mortifique,
Um momento sequer, com o freio, a boca a arder
De uma sede sem-fim de correr, de correr...

Dessa fuga talvez nem a lembrança fique...
– Certo, alguém ficará te esperando... e a sofrer.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Arnold Böcklin (1827-1901)

Ilha da Morte.

Minha pátria é minha língua

Camilo Pessanha (1867-1926)

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
Onde esperei morrer, – meus tão castos lençóis?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)
A mesa de eu cear, – tábua tosca de pinho?
E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?
– Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais,
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
De noite a mendigar às portas dos casais.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Giorgio de Chirico (1888-1978)

La commedia e la tragedia.

Poesia em tradução

Saudação segunda
Ezra Pound (1885-1972)

Fostes louvados, meus livros,
porque eu acabara de chegar do interior;
Eu estava atrasado vinte anos
e por isso encontrastes um público preparado.
Não vos renego,
Não renegueis vossa progênie.

Aqui estão eles sem rebuscados artifícios,
Aqui estão eles sem nada de arcaico.
Observai a irritação geral:

"Então é isto", dizem eles, "o contra-senso
que esperamos dos poetas?"

"Onde está o Pitoresco?"
"Onde a vertigem da emoção?"
"Não! O primeiro livro dele era melhor."
"Pobre Coitado! perdeu as ilusões."

Ide, pequenas canções nuas e impudentes,
Ide com um pé ligeiro!
(Ou com dois pés ligeiros, se quiserdes!)
Ide e dançai despudoradamente!
Ide com travessuras impertinentes!

Cumprimentai os graves, os indigestos,
Saudai-os pondo a língua para fora.
Aqui estão vossos guisos, vossos confetti.
Ide! rejuvenescei as coisas!
Rejuvenescei até The Spectator.
Ide com vaias e assobios!

Dançai a dança do phallus
contai anedotas de Cibele!
Falai da conduta indecorosa dos Deuses!

Levantai as saias das pudicas,
falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas –
Dizei-lhes que não trabalhais
e que viverei eternamente.

(Trad. Mário Faustino)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Elisabeth Vigée-Lebrun (1755-1842)

Auto-retrato.

Com licença poética

Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Raphael (Raffaello Sanzio) (1483-1520)

A escola de Atenas.

Estatutos do Homem

(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Thiago de Mello

Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
Tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Santiago do Chile,
abril de 1964.