Amigos do Fingidor

terça-feira, 30 de junho de 2009

Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828)

La Maja Desnuda.

Teu cheiro

Danielle Mariam


brinca comigo o teu cheiro
me envolvendo
me masturbando
me suicidando

cheiro bom de pele molhada
suada
depois do amor
gosto de pele curtida
de sol
gosto de pele curtida
por mim

se enrosca em mim o teu cheiro
penetra meus poros
e fere como chibata
minha tarde
pálida e morta
doce e morna tarde

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Eduard Steinbruck (1802-1882)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Meu cavalo chegou
Farias de Carvalho (1930-1997)


Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
a aurora derramada sobre a crina.
Meu cavalo chegou. Fome de tudo
estou também: engoliremos mundos.

Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
os caminhos me espiam de suas rédeas.
Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
gasto-me em pés e olhos nesta espera...

Meu cavalo chegou. Eu despertava
quando o vento falou-me de seus cascos
e a poeira garantiu-me sua presença.

Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
Tanta gente cansada nessas cruzes...
Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...

domingo, 28 de junho de 2009

Guillaume Seignac (1870-1924)

The Muse.

Minha pátria é minha língua

A flor do maracujá
Fagundes Varela (1841-1875)


Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá,
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!

Pelos jasmins, pelo goivo,
Pelo agreste manacá,
Pelas gotas de sereno
Nas folhas do gravatá,
Pela coroa de espinhos
Da flor do maracujá!

Pelas tranças da mãe-d’água
Que junto da fonte está,
Pelos colibris que brincam
Nas alvas plumas do ubá,
Pelos cravos desenhados
Na flor do maracujá.

Pelas azuis borboletas
Que descem do Panamá,
Pelos tesouros ocultos
Nas minas do Sincorá,
Pelas chagas roxeadas
Da flor do maracujá!

Pelo mar, pelo deserto,
Pelas montanhas, sinhá!
Pelas florestas imensas
Que falam de Jeová!
Pela lança ensanguentada
Da flor do maracujá!

Por tudo o que o céu revela!
Por tudo o que a terra dá,
Eu te juro que minh’alma
De tua alma escrava está!!...
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá!

Não se enojem teus ouvidos
De tantas rimas em – a –
Mas ouve meus juramentos,
Meus cantos ouve, sinhá!
Te peço pelos mistérios
Da flor do maracujá!

sábado, 27 de junho de 2009

Hans von Aachen (1552-1615)

Pallas Athena, Venus and Juno.

Poesia em tradução

Se vejo folha e flor e fruto
Arnaut Daniel (1150?-1200?)


Se vejo folha e flor e fruto
fazer das árvores dossel
e o som agudo ou breve escuto
de rãs no rio e aves ao léu,
logo me enfolha e enflora e enfruta o Amor
e a noite para mim é mais comprida
enquanto aos outros dorme, pousa e amorna.

Amor me leva ao seu reduto,
ao seu castelo mais fiel,
sem exigir renda ou tributo,
pois me faz rei em vez de réu
da fortaleza de que é o senhor,
que por fidelidade é defendida,
a fé protege e a cortesia orna.

Amor, abrigo te reputo
de altas virtudes. Teu anel
já não refugo nem refuto,
que amar me sabe como mel.
Por isso conto com o teu favor
para colher a flor mais escolhida
da aura da aurora à hora que retorna.

É tão veraz, tão absoluto
o Amor que me leva ao céu,
que erros ou males não discuto,
não temo o falso com seu fel
nem dou ouvido ao vil adulador,
pois amo e me ama a minha preferida
e maldizer algum já me transtorna.

Falar não me parece arguto
nem proclamá-lo no papel.
Ela é tão bela que eu reluto
em pintá-la com meu pincel.
Tanta esperança dobra o seu valor.
A quem mais vale, a vida já duvida,
quando não é nem amarga nem morna.

Amar assim não sabe o astuto
cortejador mau e infiel,
que a flor do Amor cobre de luto
com sua fala de ouropel.
Mas eu, que sou legítimo amador,
posso fluir em paz, por toda a vida,
de Amor só meu, que em ninguém mais sojorna.

Vai ter, canção, a essa bela flor
e dize-lhe que Arnaut apaga e olvida
todo outro amor por ela que te adorna.

(Trad. Augusto de Campos)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Karel van Mander (1548-1606)

The Continence of Scipio.

Poema da noite menor

César Leal

Desça a noite suavemente
ao encontro das auroras
movendo remos de sono.

Venha a linguagem das pedras
sangre o peito dos rochedos
à lança dos furacões.

Bandeiras de vento ondulem
na terra oculta dos sonhos
as trevas sepultem luas.

Nuvens caídas repuxem
meu corpo de luz suspenso
pelas cordas do arco-íris.

Nos labirintos da morte
— a espessura do silêncio
e a rota desconhecida.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Giorgione (1477-1510)

Pastoral Concert.

Balada dos três meninos

Cláudio Fonseca


Iam sob o mormaço
como em todas as tardes, iam.
Pão da merenda no bolso
cadernos sujos num laço,
botas no pó, já sumidas,
passavam cercas e prados.

Iam olhando as mangueiras
como em todas as tardes, iam.
Mangas carnudas, douradas,
que os dois meninos nem viam.
Ao longo as carroças passavam
alegres. Os dois seguiam.

Iam por sobre a ponte
como em todas as tardes, iam.
Mas de repente, pararam,
olharam as águas do rio
e as três varinhas de pesca
ocultas sob o plantio.

E foram pelo atalho
do cemitério, sombrios.
Olharam a cruz de Laurinho
que ia ao lado, sozinho,
silencioso e frio.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Abraham Bloemaert (1566-1651)

Landscape with Parable of the Wheat and the Tares.

Dabacuri - amazônica 3

Zemaria Pinto


a força do rio
constrói caminho nas pedras
e arrebata corpos



à flor da terra
as raízes se entrelaçam
formando figuras

terça-feira, 23 de junho de 2009

Jan van Bijlert (1597-1671)

The Concert.

Meu adeus

Benayas Inácio Pereira


Ufa! Demorou, mas até que enfim, eu morri.
Aposto que foi da perversa enxaqueca.
Sabia que um dia ela me levaria daqui.
Eis-me agora aqui nesta despedida seca.

Têm pessoas chegando de todas as alçadas.
Até algumas que eu nem conheço.
Chegam, olham-me tristes, desoladas,
Depois se aconchegam na sala em que pereço.

Já me banharam. Deram-me o melhor terno.
As horas passam. Não aguento mais tanto pesar.
As velas e os cravos cheiram mal no inverno.
E eu estático, sem ao menos poder chorar.

Na cozinha tem gente contando piada.
Daqui ouço as gargalhadas, mas nem ligo.
É até bom que durante esta longa noitada,
Haja festa e abraço de algum velho amigo.

Agora quase todos tomam chá ou café.
Na bandeja; bolachas, sanduíches, balas de anis.
Um senhor rezando num rosário com muita fé,
Aproxima-se e enfia algodão no meu nariz.

Agora todo povo perto de mim se aglomera.
A emoção aumenta. Mais gente chora.
Não consigo distinguir ninguém na atmosfera
Todos querem tocar em minhas mãos nesta hora.

É incrível, mas sinto até alguns beijos.
Pronto! Tudo agora está escuro. Fecharam a tampa.
Balançam-me. Estou no primeiro carro do cortejo.
Abrem novamente. Minha vista dói. Estou perto da campa.

O pessoal todo lamenta. O odor aumenta.
É rápido. Fecham a tampa novamente.
Dentro de mim, uma luta racial, embora lenta.
Glóbulo branco contra glóbulo vermelho transparente.

Pelo jeito estou no Cemitério da Paz.
Ao menos tenho alguns parentes vizinhos
Que me acompanharão nessa hora voraz.
Não me deixarão na solidão nem ficarão sozinhos.

Aliás, até já me acostumei à escuridão.
Apesar de preferir minha cremação instantânea,
Livre da saudade, da dor e da falsa ilusão,
Dou início agora à minha vida subterrânea.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Giuseppe Bezzuoli (1784-1855)

Venere nella conchiglia.

Estante do tempo

Sumaumeira morta
Pereira da Silva (1890-1973)


Lá vai boiando, na Água Grande em turbilhão,
A sumaumeira morta, que tombou.

Ela era antiga e gloriosa
Como um deus que passou,
Que vai bem longe, um deus heróico, um deus pagão.

A sua fronde, outrora,
Era uma eterna festa,
Onde a alegria,
Toda vestida de verde, cantava
E bailava,
Pela garganta metálica, sonora,
Dos japiins boêmios e joviais.

Coroada de arminho, a sumaumeira, sorria
Para o sol – imperatriz orgulhosa
Da floresta!

Na orgia de luz das tardes tropicais,
Plena de seiva, os galhos formidáveis
Fremiam, como braços vigorosos
Em ansiedade,
Tentando profanar as franjas impalpáveis
Do zainfe irisal dos altos céus escampos.

Depois, dentro da noite, a sumaumeira,
Tinha a grandeza de um altar druídico,
Erguido em meio da brutalidade
Das selvas e das águas tumultuárias,
Iluminado pelos pirilampos.

Mas, um dia, o apuizeiro, fascinado
Por tanta majestade e tanta formosura,
Como um capro, investiu,
Envolveu-lhe a cintura.

E a esse abraço fatídico,
Toda a sua beleza sucumbiu!

As invernias e os vendavais
Arrancaram-lhe as folhas desbotadas.
E aqueles flocos de alva pluma,
Desfeitos, doidejando, em torvelinho,
Pousando aqui, ali, no coração da mata,
Por sobre as franças verdolengas perfumadas,
Certo, haviam de ser as lágrimas de arminho
Da árvore-imperatriz, lentamente a morrer.

Quando os tentáculos cruéis do apuizeiro
Sugaram a última gota de sua vida,
De sua seiva, e ela – a nobre e altaneira
Sumaumeira, –
Morreu de todo, afinal,
A natureza, a chorar, foi vesti-la de branco.

...E a árvore-grande ficou, como um fantasma solitário,
À beira do barranco,
Crucificada na angústia do Não-ser!
A múmia branca da potência vegetal
Da Terra Verde, erguia os braços para os céus.
E ao lampadário
Do sol-poente,
Parecia enviar uma prece eloquente
Ao Sublime-Inexplicável – que é Deus!

Agora, a Água Grande, impiedosa,
Que tudo avassala e tudo desbarata,
Carcomendo o barranco, fez tombar
A velha sumaumeira morta há tanto ano!

...E lá se vai, aos roldões, na avalanche furiosa,
O velho tronco brancacento,
Cumprindo o seu fadário, assaz tirano,
As raízes voltadas para o ar.

...E lá se vai, dobrando as curvas,
Vencendo os estirões,
No esquife abissal das águas turvas,
O cadáver da velha sumaumeira!

Ashaverus das selvas amazônicas!
Para onde te leva o mau destino,
Cheio de pragas e de maldições?
Que mal fizeste em ouvir as preces melodiosas
Do passaredo, à hora do amanhecer?

Bem cruel e violento
O teu castigo!
Dia e noite boiando, a descer, a descer...
A Água Grande – esse verdugo, esse tigrino
Carrasco, a te levar
Assim,
Insensivelmente, friamente, para o fim!

Mas – Oh! Sumaumeira morta! – vai contente
Para o teu jazigo!

Em teu desfile lúgubre, em alas,
Todas as catedrais frondejantes da flora,
O tronco gigantesco a flutuar sem vida,
Cada vez mais o teu destino se alcandora!

As tuas raízes
Estão bracejando aflita despedida,
Às árvores felizes
Que vão ficando,
Verdejando
Pelas margens dos rios, a cantar.

Mas, embora arrastada pelas águas,
Os rebojos rezando em voz soturna,
As espumas coroando as tuas mágoas,
Cada vez mais soberbo e mais glorioso,
Fulge ao sol o teu tronco de gigante!
Bendita sejas, Árvore Grande de minha devoção
Emocional!
Teu último instante
Há de ser grandioso
Como o enterro de um Deus, na vastidão
Azul do espaço sideral!

Porque, afinal, soberba sumaumeira,
Para cúmulo
De tua glória, imperatriz do mundo florestal,
Terás a apoteose derradeira
Na pompa altiloquente do teu túmulo:
– O Mar!

domingo, 21 de junho de 2009

John White Alexander (1856-1915)

A King's Daughter (or Girl with Lilies).

Minha pátria é minha língua

Ismália
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu...
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

sábado, 20 de junho de 2009

Giacinto Gimignani (1606-1681)

Venus Appearing to Aeneas and Achates.

Poesia em tradução

Refúgio de pássaros noturnos
Salvatore Quasimodo (1901-1968)


No alto um pinho torcido;
está atento e escuta ao abismo
com o tronco dobrado como besta.

Refúgio de pássaros noturnos,
na hora mais alta ressoa
um veloz bater de asas.

Tem pois um ninho meu coração
suspenso na escuridão, uma voz;
está também, à escuta, da noite.

(Trad. Anibal Beça)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Jacob de Backer (1555-1590)

Garden of Eden.

Aspiração

Agostinho Neto (1922-1979)


Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco

Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo

Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer

E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu Desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Giorgio de Chirico (1888-1978)

Retrato de Clarice Lispector.

Como é simples

Arnaldo Garcez


Como é simples
ver a luz
sem medir
sua intensidade
quando só
se deseja
viver em
liberdade

quarta-feira, 17 de junho de 2009

François Boucher (1703-1770)

Diana resting after her bath.

Canção sem esperança

Zemaria Pinto

Ao Paulo Graça,
navegante do insondável

I

Não era ainda a hora de te escrever
por isso fui ao Averno
como fazíamos todas as sextas
e mergulhei meu sangue engordurado
em miligramas de moléculas de álcool

Mas já não havia o absinto de uso exclusivo dos românticos pálidos

II

Na passagem pelo Estige
sempre ponto obrigatório
vi que o alfanje prateado
sangrava recém-usado

Perguntei-me quem seria
o destinado a empunhá-lo

III

Ah, pântanos da memória
desabrochai em begônias
gardênias gerânios rosas
asfixiando o enxofre
que exalam vossas entranhas
palude paul pauis

IV

Ouço soluços ao lado
um espectro de mulher
a face descarnada as mãos trementes
implora-me um mísero trago
(ao fundo a music box
aspergia sobre nós
os nós de notas e sílabas
de um tango retrô-pós)

V

Em vão a busca prossegue
nos vãos dos leitos impuros

No Flagetonte ou no Aqueronte
meu corpo cambaleia relutante
sob o peso dos vícios
que me incutiu a nave de Caronte

VI

Às portas do Letes o dia se levanta
e eu sorvo o esquecimento
em lentos goles de quinino
(o líquido me queima os lábios e as entranhas
num rito de reencontro
com algo que não perdi)

VII

Por entre a turba apressada
meu corpo segue em direção contrária
na boca um gosto amargo
e um peso indefinido me oprimindo o peito
além de uma certeza

não era ainda a hora de te escrever

terça-feira, 16 de junho de 2009

Fernando Botero

Adam and Eve.

Chagas

Michele Pacheco


Por onde ando!
Ando por uma estrada
cheia de navalhas
que cortam minha carne.
O sangue escorre.
Seco o coração enrijece.

Ataco. Defendo-me.
Disparo palavras
no silêncio sepulcral da ignorância.
Criaturas pequenas em sabedoria.

Debilitada, indignada.
Reajo à putrefação fétida dos valores.
Humanos? Atiram-me navalhas.
Por onde ando!

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Yuri Remyga

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Antecipo minhas rugas no espelho
Antísthenes Pinto (1929-2000)


Antecipo minhas rugas no espelho.
A sombra hirta que foi vejo curvada.
Piso fundo no chão que silencia
E vou contar estrelas na vidraça.

A ave do desejo pousa em livro.
(Não há no vácuo acústica às palavras)
Liberto já do sonho que não tive
Fujo de mim e só de mim fugindo

Sem dar um passo além do que pensara
Quando fui velho sem chegar a ser.
O meu patético olhar engole o longe:

– Escuro limitando com escuro
E quanto ao perto: cinza no cinzeiro
E o negro cão do tempo me mordendo.

domingo, 14 de junho de 2009

Portrait de Madame Marie-Elisabeth de Ludres, chanoinesse de Poussay, représentée en Marie-Madeleine.

Minha pátria é minha língua

Dispersão
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)



Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida…

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias…
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-se saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro –
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim,
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi… mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!…)

E sinto que a minha morte –
Minha dispersão total –
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas…
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas…

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p’ra se dar…
Ninguém mas quis apertar…
Tristes mãos longas e lindas…

E tenho pena de mim,
Pobre menino ideal…
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?… Ai de mim!…

Desceu-me n’alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço…
A hora foge vivida,
Eu sigo-a mas permaneço…

.................................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba…
.................................................

sábado, 13 de junho de 2009

Andy Warhol (1928-1987)

Marilyn Monroe.

Poesia em tradução

Oração para Marilyn Monroe
Ernesto Cardenal


Senhor
recebe a esta garota conhecida em toda a terra pelo nome de Marilyn Monroe
embora este não fosse o seu verdadeiro nome
(mas Tu conheces o seu verdadeiro nome, o da órfã violada ao nove anos
e da empregadinha de loja que aos dezesseis tinha querido se matar)
e que agora vem à Tua presença sem nenhuma maquilagem
sem a sua Agente de Imprensa
sem fotógrafos e sem assinar autógrafos
tão sozinha como um astronauta diante da noite espacial.

Ela sonhou quando menina que estava nua numa igreja
(segundo a versão do Time)
diante duma multidão prostrada com a cabeça ao chão
e tinha de caminhar devagarinho para não pisar nas cabeças.
Tu conheces os nossos sonhos melhor do que um psiquiatra.
Igreja, casa, cova são a segurança do seio materno
e muito mais do que isso ainda...
As cabeças são os admiradores, é claro
(a massa de cabeças na escuridão por debaixo dos focos de luz)
Mas o templo não são os estúdios da 20th Century-Fox.
O templo – de mármore e ouro – é o templo de seu corpo
em que está o Filho do Homem com um chicote na mão
expulsando os mercadores da 20th Century-Fox
que fizeram de Tua casa de oração um covil de ladrões.

Senhor
neste mundo contaminado de pecados e radioatividade
Tu não culparás somente a uma empregadinha de loja
que como toda empregadinha de loja sonhou ser estrela de cinema.
E seu sonho foi realidade (mas como a realidade do tecnicolor).
Ela não fez senão representar segundo o script que lhe demos
– o de nossas próprias vidas – e era um script absurdo.
Perdoa-a Senhor e perdoa-nos
pela nossa 20th Century
por esta Colossal Superprodução em que todos trabalhamos.

Ela tinha fome de amor e lhe oferecemos tranquilizantes,
para a tristeza de não ser santos
foi-lhe recomendada a Psicanálise.
Lembra-te Senhor de seu crescente pavor à câmara
e seu ódio à maquilagem – insistindo em maquilar-se em cada cena –
e como foi se fazendo maior o horror
e maior o incumprimento dos horários.

Como toda empregadinha de loja
sonhou ser estrela de cinema.
E sua vida foi irreal como um sonho que um psiquiatra
interpreta e arquiva.

Os seus romances foram um beijo com os olhos fechados
que quando no abrir dos olhos
descobre-se que foi dado sob os refletores
e apagam os refletores!
e desmontam as paredes da alcova (era um cenário cinematográfico)
enquanto que o diretor vai embora com seu caderno
porque a cena já foi filmada.
O mesmo é com uma viagem em iate, um beijo em Cingapura, um baile no Rio
ou uma recepção no palacete do Duque e da Duquesa de Windsor
vistos na TV de um apartamento pobre.

O filme terminou sem o beijo final.
Foi achada morta em sua cama com a mão no telefone.
E os detetives ficaram sem saber a quem ela ia chamar.
Foi
como alguém que marcou o número da única voz amiga
e ouve somente a voz de uma fita que diz: WRONG NUMBER
Ou como alguém que ferido pelos gângsteres
estende a mão sobre um telefone desligado.

Senhor
quem quer que tenha sido aquele que ela ia chamar
e não chamou (e talvez não fosse ninguém
ou fosse Alguém cujo número não está no Catálogo de Los Angeles)
atende Tu ao telefone!

(Trad. Paulo de Carvalho Neto)

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Karoly Brocky (1807-1855)

Sleeping Bacchante.

Girassóis de barro

Francisco Carvalho


Vou me lembrar de ti
do teu vestido claro
de tua janela verde
com girassóis de barro.

Vou semear teu corpo
com cio de cavalo
vou seduzir teus olhos
com girassóis de barro.

Vou te esperar à luz
do luar do meu cigarro
com flores amarelas
de girassóis de barro.

De Atenas vou a Troia
de Tebas a Cartago
para te dar um ramo
de girassóis de barro.

Vou mergulhar nas ondas
do teu secreto lago.
Teus seios de andaluza
são girassóis de barro.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Canaletto (1697-1768)

Piazza San Marco - Looking Southeast.

Janelas em arco

Moacir Andrade


Nesta fachada de pedra,
nestas varandas de ferro,
de fogo e formas de amor,
nestes frontões esculpidos,
feitos de herança e memória,
nestes vidros coloridos,
arco-íris de mistérios
de muitas tardes de sol.
Dos arcos destas janelas,
nos desenhos, monogramas,
nas datas de antigas eras,
renascem velhas histórias
no fundo d’alma escondidas,
incrustadas transparências
como se fossem mensagens
em cromos de olhar crispados.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Feodor Bruni (1801-1875)

Bacchante Giving Wine to Cupid.

minha toada

Zemaria Pinto


amarrei minha toada
em quatro quadras ligeiras
redondilhas temperadas
pelo aço das palavras

palavras que se entrelaçam
dezesseis versos matreiros
como pássaros que passam
em rimas ocasionais

quatro trovas na fieira
são quatro moças dengosas
quatro potros na carreira
quatro facas de cortar

versos, cantos, cantoria
pelas ruas da cidade
vou espalhar poesia
para o meu amor passar

terça-feira, 9 de junho de 2009

José Rodriguez Acevedo (1907-1981)

Sem título.

do outro lado da sombra do vento

João Sebastião


do outro lado da sombra do vento
passa um rio de águas transparentes
onde pássaros brincam de manja-pega
com peixes e pequenos roedores

do outro lado da sombra do vento
o leite dá em árvores
o mel brota das flores
e os pães espalham-se entre as pedras das encostas

do outro lado da sombra do vento
medra o vinho nas parreiras
o néctar, nas palmeiras
e os frutos flutuam como nuvens ao alcance da mão

do outro lado da sombra do vento
eu alimento um desejo proibido:
construir contigo um sonho
de sermos um para o outro mais que amigos...

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Henri Gervex (1852-1929)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

O ouro do rio Amana
Alcides Werk (1934-2003)


Tuas doces águas, Amana,
de repente se toldaram.

Chegaram dragas, pontões,
canoas, motores, balsas
abarrotadas de homens
falando gírias estranhas,
escafandros, pás, bateias,
mecanismos de sucção
a revolver-te as entranhas
e o teu relevo de margens:
foi decifrado o segredo
do teu rico aluvião.

As cobiças pessoais
precisam catar o ouro
para urgências nacionais.

Cadê teus patos selvagens,
teus amenos inambus,
tangurupará voltando
(segundo registra a lenda)
de lutas com o japiim,
o som rouco das ciganas
a voz dos uirapurus,
o alarido dos guaribas,
os bandos de caititus,
os socós-boi meditando,
jacarés-pedra espiando,
tracajás quase dormindo
na beira, esquentando o sol?

Cadê tuas ariranhas,
tuas antas e capivaras,
teus tambaquis, tuas piranhas
pretas, teus pirarucus,
teus surubins, teus pacus,
araris e pirararas?

Vai, leva ao Parauari
(que também foi descoberto)
teu choro amargo de virgem
possuída sem amor.

Conta que há alto-falantes
espantando os papagaios;
que em cada motor-de-linha
chegam novos garimpeiros;
que as vilas vão-se formando
nas margens, e em cada tenda
há muitas coisas à venda
e mulheres de aluguel
(brancas, louras, que adoecem
por rejeição natural);
que há muito cabra-da-peste
e cenas de faroeste,
cachaça, carne-de-lata,
cigarro, pilha, sardinha,
leite-moça, mosquiteiro,
lanterna, charque do Sul.

Entrega teu ouro, Amana,
quanto mais cedo melhor.
Quero que sejas tão pobre
que nem se lembrem que existes.

Depois do caso passado,
mesmo sabendo que és triste,
quero fazer um roçado,
levantar um tapiri,
deixar o mundo de lado
e morar perto de ti.

domingo, 7 de junho de 2009

Francesco Hayez (1791-1882)

Ritratto della Contessa Luigia Douglas Scotti d'Adda.

Minha pátria é minha língua

Soneto
Francisco Otaviano (1825-1889)


Morrer, dormir, não mais, termina a vida,
E com ela terminam nossas dores;
Um punhado de terra, algumas flores...
E às vezes uma lágrima fingida.

Sim, minha morte não será sentida:
Não tive amigos e nem deixo amores;
E se os tive, tornaram-se traidores,
Algozes vis de um’alma consumida.

Tudo é podre no mundo! Que me importa
Que amanhã se esboroe ou que desabe,
Se a natureza para mim é morta?!

É tempo já que o meu exílio acabe...
Vem, vem, ó morte! ao nada me transporta:
Morrer, dormir, talvez sonhar, quem sabe!

sábado, 6 de junho de 2009

Lucas Cranach, o Velho (1472-1553)

Vênus e Cupido.

Poesia em tradução

No meu ofício ou arte amarga
Dylan Thomas (1914-1953)


No meu ofício ou arte amarga
Que à noite tarda é exercido
Quando alucina só a lua
E dormem lassos os amantes
Com as dores todas entre os braços,
É que trabalho à luz cantante
Não pela glória ou pelo pão,
Desfile ou feira de fascínios
Por sobre palcos de marfim,
Mas pela paga mais afim
De seus secretos corações!
Não para alguém altivo à parte
Da lua irada é que eu escrevo
Os respingados destas páginas
Nem pelos mortos presumidos
Cheios de salmo e rouxinóis.
Mas para amantes cujos braços
Têm os cansaços das idades
Que não me dão louvor nem paga
Nem prezam meu ofício ou arte.

(Trad. Ivo Barroso)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Abraham Bloemaert (1566-1651)

Shepherdess.
Haicaipiras (seleção)
Domingos Pellegrini


Cê pensa que flor
flore pra quê?
Flor só flore pra quem vê


Nunca acaba
quanto mais cato
mais cai goiaba


O tempo levita
enquanto a lua levanta
sua manta branca


Aproveita bastante
amanhã esta lua cheia
já será minguante


Incrível: nascendo
o dia é tão indescritível
que só mesmo vendo


Oito horas, confira:
canta no beiral
o casal de corruíras


E de novo aconteceu
o ipê todo se despiu
e floresceu


Comer com gosto
a fruta regada
com suor do rosto

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Antonio Bellucci (1654-1726)

Rinaldo and Armida.

O lago do Marajá

Almir Diniz


Além do paraná, do campo aberto,
das estreitas restingas e baixios,
além dos igapós, aquém dos rios
abre-se o lago, místico, deserto.

Não aparece nos mapas, não! Decerto
por ser absconso causa desvarios,
silencioso, até dá calefrios
enquanto gera lendas... tão de perto.

É esquisito, sim, todos lhe sabem
o estranho poder extraterreno
– mescla rara de temor e panteísmo.

E embora seu fascínio todos gabem,
é certo que de seu conjunto ameno,
deriva, sempre, imenso misticismo.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Jules-Élie Delaunay (1828-1891)

Diana.

Canção para a moça clara

Zemaria Pinto


felino sorriso branco
no chão de cal da memória
alva em seu vestido neve
diáfana caçadora
nasce a moça na candura
da manhã feita de anil

cabelos de longa dança
e suaves tons amarelos
sopram seda sobre o colo
casulo onde a moça guarda
com rigores de clausura
vontades elementares

à sombra do véu que a veste
adivinho o ventre lânguido
feito de leite e de espuma
quando a moça num meneio
gira em torno da canção
que se revela aos meus olhos

em largos gestos de adeus
a moça cavalga o vento
gargalhando epifanias
deserdando-me de mim
clara clara plurialva
sob o sol do meio-dia

(mas os pelinhos da moça
só depois eu pude ver
são da cor noite-sem-lua
selva de negra folhagem
limalha palha fuligem
vertigens de anoitecer)

terça-feira, 2 de junho de 2009

Franz von Stuck (1863-1928)

Spring.

Poeta operário

Edivan Rafael


Trazendo o suor como um nobre companheiro
em meios às máquinas, vou tecendo meus versos;
junto a esses burgueses que forjam o progresso
que não se inspiram, mas só respiram dinheiro.

Sou um operário, poeta por imensa necessidade
de criar, inventar um mundo bem mais suportável,
conduzir algum conforto aos corações amáveis
tentar a qualquer custo, escancarar a verdade.

Mesmo a ganância do sistema e muito cansaço,
vou saltando os obstáculos do preconceito,
a poesia é um escudo que protege o meu peito.
O meu trabalho é carga que sustento no braço.

Assim sou, essa filosofia escolhi para o meu viver.
Ser operário, que cedo desperta para a árdua labuta,
compartilha amizade com os companheiros de luta,
um simples poeta, fazendo versos para o mundo ver.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Masami Teraoka

Birth of Venus.

Estante do tempo

Sonho
Th: Vaz (1869-1921)


De noite sonho e nesse sonho vejo
Formosa dama que fascina e encanta.
Tenho-a bem perto, seu olhar espanta
De minhas mágoas o infernal cortejo.

Rosas florescem no seu rosto, o beijo
Na rubra polpa de seu lábio canta,
Há na sua voz tanta doçura, tanta,
Que eu cuido ouvir um doce e vago arpejo.

Desperto enfim, nada mais vejo! agora
Tudo deserto! A noite finda, a aurora
Uns tons sanguíneos pelos céus derrama...

E desde então (ó fantasia! ó sonho!)
Por toda parte o meu olhar tristonho
Anda à procura da formosa dama.