Amigos do Fingidor

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Girolamo da Treviso (1497-1544)

Sleeping Venus.

Sonetos do entardecer

Virgílio Maia

I

Um azul muito antigo apascentava
os cabritinhos perto do curral.
E um vento de cinzel, mãos de Chagall,
os cabelos das nuvens desgrenhava.

Era o meu bisavô quem aboiava
à tarde que caía sertaneja?
Quem era, então, que qual numa peleja
cavalgava as vogais com voz tão cava?

Tudo resseco. A pedra reluzente
é lítica seara adormecida,
mostrando ali milênios de mormaço.

Vem de novo o aboio, agora rente
ao beiral de uma casa demolida,
cortando os ares qual se fora de aço.


II

Só sei que havia uns pássaros passando,
um menino soltando a sua arraia
e vento, muito vento, que na praia
algum vento é de estar sempre soprando.

Tranquilo entardecer de um verão brando:
miro, sem pressa, o mar que não tem pressa
e vejo, tão bonita!, também essa
ave marinha branca, vez em quando.

Toda a tarde se faz em mil carinhos,
nesta areia que brinca nos meus pés,
me apagando pegada após pegada.

Vem agora, não sei por quais caminhos,
de que sutis veredas através,
um cheiro agreste de castanha assada.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Jan Gossaert (1478-1532)

Danaë.

A semente

Anisio Mello

De Tua alta mansão banhas as montanhas,
com o fruto de Tuas obras sacias a terra.
(Salmo 103, St.º Thomás)


De pau e pedra cresce a montanha
que se espreguiça no âmago telúrico
e forma em monumentos
os mamilos da terra
de onde jorra o maná por entre as pedras
e o cascalho reluz em micas e cristais.

São brilhantes de garimpo azul
que se escondem no negro e fundo,
onde não há luz de todo este princípio,
onde nasceu o primeiro pensamento e o raciocínio.

De pau e pedra cresce a montanha
com o resto que sobrou
de gerações soterradas pelo ódio,
pela guerra, pela morte, enfim.

São restos de galeras e de arcas,
múmias do acaso incensadas pelo tempo,
bálsamo da salvação
e de todos os milagres,
do meu, do teu, do nosso, pois pensamos,
e sabemos que um dia não sabemos
que montanhas hão de ser, o eu que sou,
e nós, que perdemos na luta inglória
de crer, de construir e de amar.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

François Boucher (1703-1770)

Vertumnus and Pomona.

Dabacuri - amazônica 4

Zemaria Pinto


inventando formas,
raízes à flor da terra
– assombro e encanto



olhos faiscantes,
o pequeno jacaré
observa, atento

terça-feira, 28 de julho de 2009

Giuseppe Cesari (1568-1640)

Diana and Actaeon.

almoço de domingo

Cynthia Teixeira


é domingo, leve como o silêncio.
um cheiro forte de desassossego de pai-morto e mãe abatida.
recordo meu passado
de ser sorridente e concreto.
– eu era viva em outro lugar,
rodeada de gente ao meu lado.

mas, que venha este velho almoço,
que eu escolhi e que me escolheu.
o vidro de sal e o pote de farinha,
há neles certa pena?
irrita-me a força de gente mais do que eu,
a potência da colher batendo no prato.
irrita-me o vigor que me exige a faca no cortar.

sim, e ainda há um festivo burburinho entre mesa e cadeira,
entre prato e colher,
entre garfo e faca.

e todos eles zombam de mim,
essas coisas da mesa do almoço de domingo, mais do que eu,
que sou menos gente do que eles, que não são gente.

e todos zombam, porque só o que me resta é bufar.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Jeffrey Wiener

Birth of Venus.

Estante do tempo

Fim de tarde amazônico
Homero de Miranda Leão (1913-1987)


O céu, berço de luz, se transfigura
Na rútila beleza da paisagem...
De franjas de ouro a mata se emoldura...
Canta a cigarra em meio da folhagem...

Do sol a pouco e pouco a fulva imagem
vai desaparecendo na incerteza
do horizonte longínquo e na miragem
de símbolos febris da Natureza...

Sobre as águas barrentas, vão descendo
velhos galhos e troncos, à feição
de antigas caravelas, descrevendo

uma reta perfeita e verdadeira...
O sol mergulha no último clarão...
Morre a tarde nos longes do Madeira...

domingo, 26 de julho de 2009

Masters of the Fontainebleau School (1550-1590)

Allegory of the Birth of the Dauphin.
Elegias – A vida (fragmento)
João de Deus (1830-1896)


A vida é o dia de hoje,
A vida é ai que mal soa,
A vida é sombra que foge,
A vida é nuvem que voa;
A vida é sonho tão leve
Que se desfaz como a neve
E como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
Mais leve que o pensamento,
A vida leva-a o vento,
A vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave;
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida – pena caída
Da asa de ave ferida –
De vale em vale impelida,
A vida o vento a levou!

sábado, 25 de julho de 2009

Ferdinand Keller (1842-1922)

Flora.

Poesia em tradução

Se
Rudyard Kipling (1865-1936)


Se podes calmo estar entre homens que se agridem,
a cabeça pendendo – e disso te acusando;
se podes crer em ti quando os outros duvidem,
mas concordar em que prossigam duvidando:
se podes esperar, sem que a espera te canse,
ou mintam sobre ti – sem que mintas, no entanto,
ou, sendo odiado embora, o ódio te não alcance,
e não pareças – inda assim – ou sábio, ou santo;

se sonhas, mas não é por sonhos dominado;
se pensas, mas não vês, só nisso, o alvo da mente;
se o Triunfo, ou o Desastre, encontras ao teu lado
e tratas esses dois tartufos igualmente:
se disseste a verdade – e a pode ver torcida
em ardil de impostor; se rotas, em pedaços,
as coisas por que tu sacrificaste a vida,
curvado as reconstróis com os teus doridos braços;

se podes arriscar tudo o que é teu – mas tudo –
num lance só – cara ou coroa! – e, num momento,
perder, e começar de novo, e ficar mudo,
sem uma queixa, uma palavra de lamento:
se podes obrigar teu corpo, na verdade
exausto em carne e em alma, a erguer-se e a te servir,
quando em ti nada houver senão tua Vontade
que não se rende e lhe comanda: “Resistir!”;

se te ouvem multidões e a virtude é contigo,
ou frequentas os reis e o bom-senso te guia;
se não podem ferir-te, o amigo ou o inimigo,
e se, confiando em ti – de mais, ninguém confia:
se, de cada minuto, enches cada segundo
com um passo para a frente em luminoso trilho,
então eu te direi que dominas o Mundo
e direi muito mais: que és um Homem, meu filho!

(Trad. Gondin da Fonseca)

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Albert Aublet (1851-1938)

Selene.

10 haicais com lua

Alano de Freitas


Luar sintético
no bosque reluz
jovem batom. Lírico tom.


Lua prata luze
e acende a beleza
do lago à noite.


Verdade que não há Lua
que resista ao belo
de uma mulher nua.


A Lua não tem drama,
nem lírica. Branco encanto,
ao poeta clama.


Luz e Lua dão luar
sapo e trovão chuvarada
– grão vai florar.


Luar abre a boca
do charco que cospe
na pedra o sapo.


Por quase oito dias
a Noite em comilança
põe a Lua na pança.


Nesga de Lua.
Após oito noites
clareia a rua.


Beleza mesmo é a da Lua...
Bela do ermo
e da cela nua.


Sons de violino
trazem ao céu
disco de prata.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

William Bouguereau (1825-1905)

Autoportrait presenté à M. Sage.

Da nossa aldeia

Donaldo Mello

(...) vejo quanto da terra se pode ver o Universo
Fernando Pessoa /Alberto Caeiro,
em O Guardador de Rebanhos, VII

As panelas areadas
na beira do rio.

Areia fininha, esfregada
com pano velho no

alumínio da velha
frigideira fritadeira:

das sardinhas, dos pacus;
refletindo o sol intenso

amazônico; as panelas
reluzentes penduradas

na parede da cozinha
da casa humilde ribeirinha,

amazônica, reluzindo uma
espécie de estante de troféus.

Condecorações alinhadas
traduzindo: pobreza, paciência, destreza.

A pureza da alma amazônica,
refletida no desvelar da fuligem

retirada com esmero delicado
pelas mãos ciosas das mulheres.

Mães laboriosas, dos filhos
desterrados a ouvi-las a distância

no canto sagrado da nostalgia
de um tempo do verde e das águas.

Na beira do rio as panelas
areadas a brilhar, a brilhar

a brilhar, além! Lá bem...
“Nostalgia do mais”: “paixão do infinito”.

Ao dileto amazônida Arlindo Castro,
artista residente em Brasília.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Georges Braque (1882-1963)

Le grand nu.

exercício nº 20

Zemaria Pinto


os músculos noturnos retesados
são arcos distendidos contra a luz
que o sol desenha em círculos concêntricos
na pele negrazul da altamanhã
o ritmo das asas são tambores
frenéticos rasgando o espaçotempo
relâmpago de hermes rutilante
em ônix e ébano forjado
o assombro em multidão multiplicado
é um frêmito lascivo em cada corpo
e um grito sufocado na garganta
meu peito não resiste ao chamamento
e um urro sai de mim feito uma lança
NAGÔ ZOROBABÉLIA IORUBÁ

terça-feira, 21 de julho de 2009

Louis Hersent (1777-1860)

Daphne and Chloe.

A rosa do futuro

José Herculano da Nóbrega


Quero uma rosa do futuro
Sem intervenção cirúrgica
E sem poluição plástica
Que atenda o natural da natureza.

Uma rosa com o brilho do brilhante
E o perfume da rosa pura
As suas pétalas, rindo como criança
Na inocência da criação.

Assim: se faz poesia no íntimo
Da imaginação.
Quero uma rosa pura admiração.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Brenda Burke

Birth of Venus.

Estante do tempo

Utas
Raimundo Monteiro (1882-1932)


Morre, em surdina, a toada
De uma viola magoada...
– Penso na minha Amada.


Do alto a lua irradia
Sobre a selva sombria...
– O luar parece dia.


O rio, amplo e sonoro,
Flor, sabe que eu te adoro:
– À sua margem choro...


As árvores do caminho
Curvam-se cheias de ninhos...
– E nós passamos sozinhos.


Sobe, cansada, a ladeira
Da montanha, a pegureira...
– Imagem da vida inteira.


O meu jardim, ao sol poente,
Parece que fica doente...
– É como o sonho da gente.

domingo, 19 de julho de 2009

Joseph Karl Stieler (1781-1858)

Retrato de Beethoven.

Minha pátria é minha língua

Antífona
Cruz e Sousa (1861-1898)


Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
de luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras,
de Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
e dolências de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

Infinitos espíritos dispersos,
inefáveis, edênicos, aéreos,
fecundai o Mistério destes versos
com a chama ideal de todos os mistérios.

Do Sonho as mais azuis diafaneidades
que fuljam, que na Estrofe se levantem
e as emoções, todas as castidades
da alma do Verso, pelos versos cantem.

Que o pólen de ouro dos mais finos astros
fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
sonoramente, luminosamente.

Forças originais, essência, graça
de carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
do Éter nas róseas e áureas correntezas...

Cristais diluídos de clarões alacres,
desejos, vibrações, ânsias, alentos,
fulvas vitórias, triunfamentos acres,
os mais estranhos estremecimentos...

Flores negras do tédios e flores vagas
de amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
em sangue, abertas, escorrendo em rios...

Tudo! vivo e nervoso e quente e forte,
nos turbilhões quiméricos do Sonho,
passe, cantando, ante o perfil medonho
e o tropel cabalístico da Morte...

sábado, 18 de julho de 2009

Paris Bordone (1500-1571)

Sleeping Venus with Cupid.

Poesia em tradução

O primeiro degrau
Kostantinos Kaváfis (1863-1933)


Foi a Teócrito queixar-se um dia
Eumene, poeta ainda jovem:
“Faz dois anos que escrevo e até agora
compus apenas um idílio.
Esse, o meu único trabalho pronto.
Pobre de mim! Pelo que vejo, é alta,
deveras alta, a escada da Poesia.
Estou no primeiro degrau: jamais,
infeliz que sou, chegarei ao topo.”
“Essas palavras”, respondeu Teócrito,
“são um despropósito, blasfêmias.
Se estás no primeiro degrau, cumpria
te sentires feliz e envaidecido.
Chegar onde chegaste não é pouco,
nem é pequena glória o que fizeste.
Do primeiro degrau da mesma escada
está bem distante o comum das pessoas.
Para pisar esse degrau de ingresso,
necessário é que sejas, por direito,
cidadão da cidade das ideias –
um título difícil: raramente
fazem-se ali naturalizações.
De quantos na sua ágora legislam,
aventureiro algum pode zombar.
Chegar onde chegaste não é pouco,
nem é pequena glória o que fizeste.”

(Trad. José Paulo Paes)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Corrado Giaquinto (1703-1766)

Justice and Peace.

Fragmento de blues

Francisco José Tenreiro (1921-1963)
(A Langston Hughes)

Vem até mim
nesta noite de vendaval na Europa
pela voz solitária de um trompete
toda a melancolia das noites da Geórgia;
oh! mamie oh! mamie
embala o teu menino
oh! mamie oh! mamie
olha o mundo roubando o teu menino

Vem até mim
ao cair da tristeza no meu coração
a tua voz de negrinha doce
quebrando-se ao som grave dum piano
tocando em Harlem:
– Oh! King Joe
King Joe
Joe Louis bateu Buddy Baer
e Harlem abriu-se num sorriso branco

Nestas noites de vendaval na Europa
Count Basie toca para mim
e ritmos negros da América
encharcam meu coração;
– ah! ritmos negros da América
encharcam meu coração!
E se ainda fico triste
Langston Hughes e Countee Cullen
vêm até mim
cantando o poema do novo dia
– ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!

...logo com eles quero cantar
logo com eles quero lutar
– ai! os negros não morrem
nem nunca morrerão!...

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Hendrik van Balen (1575-1632)

Minerva and the Nine Muses.

Haicai

Jorge Tufic


Haicais, quando os faço,
são vistos como imprevistos
fenômenos do espaço.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Zinaida Serebriakova (1884-1967)

Nu Couché.

platônica

Zemaria Pinto


ai, que já me arde a febre do desejo
volúpia de te ver, tocar, amavelmente
no ritual cotidiano das tardes mais banais

como não sonhar com teu colo pálido
e a sarda que se espalha
pelo teu braço infinito?

as minas de rosáceas do teu peito
espalham nervos na sala entorpecida
pela pressa de chegar de onde se vem

sempre – cotidianamente
a carne dos teus lábios
roçagando minha barba por fazer

a língua desfaz-se em fogo
adivinhando tua língua de silêncios
meu coração delira preces pagãs

a palavra – um convite? um carinho?
desaba dentro de mim
borboleta abatida a escopeta

um helicóptero sobre minha cabeça
cavalga walkírias & fúrias
fim do expediente

(amor? amor um cacete
você não existe
o tesão não resiste

você não precisa saber
que a vida não vale nada
sem você!)

terça-feira, 14 de julho de 2009

Jacques-Louis David (1748-1825)

Mars Disarmed by Venus and the Three Graces.

Quero te falar das muitas coisas

Inácio Oliveira

Quero te falar das muitas coisas
Que aprendi nesta vida.

Aprendi francês
Que deu pra ler Rimbaud
E dizer palavras baixas na hora da cama.

Aprendi a medir o tempo livre, com uma guitarra.

Aprendi a abrir os braços para receber a noite
Assim oh, ela vem sem pressa
Eu olho para o céu e logo meus olhos se enchem de estrelas.

Aprendi a olhar de novo
E ver o que antes não vira,
A olhar outra vez
E ver diferente.

Aprendi uma certa maneira de sorrir
Que só as tristezas ensinam.

Aprendi a amar as formas breves do mundo:
Um pôr-do-sol em alguma tarde qualquer de verão,
As poças d’água que refletem a lua,
Esquinas onde o tempo pára quando amigos se reúnem,
Pedras à beira do caminho,
Arames farpados que perfuram a paisagem.

Aprendi a amar tudo que passa:
Os caminhões de carga,
Os navios sem porto,
O rio e seus mistérios,
As areias que mudam com o vento,
As pessoas que mudam com tempo.

Aprendi a amar o mal e o bem me quer.

Aprendi a amar a vida
Assim como se ama o corpo de uma mulher.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Frank Kortan

The late birth of Venus.

Estante do tempo

Eu
Violeta Branca (1915-2000)



A exaltação universal
trago-a,
quente e vermelha,
em cada gota de meu sangue.
No meu cérebro
passam, numa rapidez inquietante
de navalhas, ferindo,
os pensamentos,
que nem todos podem pensar.
A ressurreição
da claridade delirante de todos os dias de sol
corre em algemas gritantes
pelos meus gestos expressivos.
Meus nervos,
– cobras vibrantes – enroscam-se
pela árvore branca e sonora
de meu corpo jovem
e deixam restos de sensações fortes
na selva emocional
de minha alma!

Eu tenho uma sensibilidade de punhal!

E nos meus poemas
dança, em alegorias bizarras
e movimentos novos,
toda a instintiva
e incontida
volúpia universal!

domingo, 12 de julho de 2009

Eugène Delacroix (1798-1863)

The Barque of Dante (and Virgil).

Minha pátria é minha língua

Dois poemas para Virgílio


Herança
Henriqueta Lisboa (1904-1985)

Ouso à sombra de Dante ao meu Virgílio
oferecer louvor com tal ternura
que me estremece a voz ao casto idílio.

Quem mergulhou um dia na leitura
do magno poeta vem transfigurado
de uma consciência límpida e madura.

Todo o valor do tempo no passado
volve de novo em raios convergentes
à lembrança de lume radicado.

Tudo emerge no plano do presente
– pronto, cálido e nítido – pelo ato
que é promessa de vida permanente.

A cada circunstância o termo exato
dá testemunho da alma que está presa
à contínua experiência do recato.

Esse conhecimento da beleza
junto à simplicidade quase rude
já sobreleva os dons da natureza.

Clássico sereníssimo! Que o estude,
sempre, alguém, à noção de que é mister
entregar-se ao destino em plenitude

a maneira de Eneias para obter
a expressão que transcende esse destino
e é dádiva de sangue a outro ser.

O verbo humano, então, se faz divino.


Soneto a Virgílio
Augusto Frederico Schmidt (1906-1965)

Nesta hora em que o mundo em desespero
Busca os fundos e ásperos abismos,
Como é suave consolo às almas tristes
Ouvir a tua voz humana e eterna!

Poeta de alma tão pura e olhar tão doce,
Cantor das almas simples e saudáveis,
Pai de Eneias, o herói piedoso e esquivo,
E dessa Dido, cujo drama ainda

Aos nossos corações tanto enternece.
Cristão antes de Cristo, a quem sentiste
Nas entranhas de um tempo inatingido.

Poeta e cantor da Paz, alma sensível,
Dá-nos do teu Amor as claras lágrimas
Para conforto de tão duras penas.

sábado, 11 de julho de 2009

Jerome Martin Langlois (1779-1838)

Diane and Endymion.

Poesia em tradução

II Bucólica – Aléxis
Virgílio (70-19 a.C.)


Córidon, o pastor, ardia pelo belo Aléxis,
delícias de seu dono, mas não tinha o que esperar.
Apenas frenquentava as faias densas, de sombrias
copas, junto das quais lançava aos montes e florestas,
com vã paixão, sozinho, estes lamentos mal cuidados:

“Não prestas atenção, cruel Aléxis, nos meus cantos?
Não tens pena de nós? Assim acabarei morrendo.
Agora até os rebanhos buscam o frescor e as sombras;
agora escondem-se nas sarças os lagartos verdes,
e, para os ceifadores que o calor esfalfa, Téstilis
ervas de cheiro antigo esmaga com serpilho e alho.
Contudo, enquanto os rastros eu te sigo ao sol ardente,
soam comigo os arvoredos, roucos de cigarras.
Não seria melhor sofrer as iras aflitivas
e os soberbos desprezos de Amarílis? Ou Menalcas,
moreno embora seja ele, quando tu és alvo?
Não te fies demais nas cores, ó menino belo:
caem as brancas alfenas, colhem-se os murtinhos negros.
Tu me desprezas, nem indagas quem sou eu, Aléxis,
quantos rebanhos tenho, quanto leite cor de neve;
erram nos montes da Sicília as minhas mil cordeiras;
não me falta no estio leite fresco, nem no inverno;
eu canto o que cantava habitualmente Anfião de Dirce
no atiço Aracinto, se chamava os seus rebanhos.
E não sou feio assim: vi-me na praia há pouco tempo,
com o mar tranquilo sob o vento: não receio Dáfnis,
sendo tu mesmo o juiz, se não enganam as imagens.

“Oh!, se quisesses tão-somente repartir comigo
uma choupana humilde em pobre campo, flechar veados,
levar cabritos, em rebanho, ao verde malvaísco!
Junto comigo, imitarás cantando Pã nas selvas.
Pã ensinou-nos a ligar com cera várias canas,
Pã cuida dos rebanhos e dos guias dos rebanhos.
Não te aborreças de esfregar os lábios nessa frauta;
para outro tanto conhecer, que não fazia Amintas?
De sete tubos desiguais, pertence-me uma frauta
que Dametas me deu, em dias idos, de presente,
dizendo-me ao morrer: “Agora és o segundo a tê-la.”
Dametas disse, e Amintas, o insensato, teve inveja.
Dois cabritos também, que achei em vale não seguro,
ainda têm na pele manchas brancas, e por dia
secam dois ubres de uma ovelha, guardo-os para ti.
Algum tempo já faz que Téstilis os quer levar,
e os levará, que te repugnam os presentes nossos.

“Vem para cá, belo menino; as Ninfas para ti
trazem cestas de lírios; para ti a branca Náiade
colhe violetas pálidas, também papoulas altas,
e narcisos lhes junta, e a perfumada flor do aneto;
então tecendo-os com a lauréola e outras ervas suaves,
orna os murtinhos tenros com os tegetes amarelos.
E frutos brancos, de lanugem branda, eu colherei,
e essas castanhas que a Amarílis minha tanto amava;
ameixas cor de cera juntarei, assim honrando-as;
e colher-te-ei, ó louro, e próximo de ti porei
o mirto: juntos, misturais vossos odores suaves.

“Córidon, és um tonto! Aléxis foge a teus presentes,
e, se lutares com presentes, poderás com Iolas?
Ah, mísero, que fiz? Lancei perdido o Austro nas flores,
e javalis eu atirei nas fontes transparentes.
De quem foges, demente? Os deuses habitaram selvas,
e Páris, o dardânio. More Palas nos baluartes
que ela fundou; antes que tudo agradem-nos as selvas.
De olhar feroz, a leoa busca o lobo; o lobo, a cabra;
a cabra amiga de brincar busca o florido cítiso;
Córidon a ti, Aléxis: cada qual com o seu prazer.
Vê: o arado suspenso ao jugo puxam-no os novilhos,
e o sol a decair duplica as sombras que se alongam.
Contudo ardo de amor; que meio-termo tem o amor?

“Córidon, Córidon, ah que demência te tomou?
Semipodada tens a vide no frondoso olmeiro;
por que antes não preparas algo que faz falta ao uso,
entretecendo o vime e, a par, o junco tão flexível?
Se Aléxis te desdenha, encontrarás um outro Aléxis.”

(Trad. Péricles Eugênio da Silva Ramos)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Pierre-Auguste Renoir (1841-1919)

Nude in Sunlight.

Tocaia

Bruna Lombardi


Que o amor nos possuísse
no meio de um descampado
num jogo que não tem regra
nem pecado

Numa tortura lenta
com ritual absoluto
que o amor nos possuísse
doce e bruto

Que houvesse fuga e corrida
e grito agudo na boca
que a dança fosse selvagem
e louca

Com maldade instintiva
guerra de unha e dente
todo impulso desmedido
corpo quente

Depois na hora do cerco
firmes os cinco sentidos
vem o animal e se envolve
atraído

Pra que dure mais o jogo
ora foge ora se entrega
se joga se abre provoca
depois nega

Cúmplice do adversário
de manso se defendendo
vai pouco a pouco à cilada
cedendo

Corpo todo se espalhando
no meio do descampado
na luta quem não domina
é dominado

E aí segura a corrente
manseia cavalo bravo
na luta quem não é senhor
é escravo

Chegada a hora da posse
o momento mais violento
novilha presa arqueia
sem movimento

No meio do seu combate
foi afinal possuída
e geme pra essa morte
melhor que a vida

Se enrosca sentindo o gosto
de ter sido capturada
sabendo que foi vencedora
e derrotada

E depois de tudo resta
um cansaço ainda melhor
sorriso dentro do corpo
fora o suor

Que o amor nos possuísse
com sensação de perigo
no meio do descampado
como a dois inimigos.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Candido Portinari (1903-1962)

Retirantes.

Enchente

Dori Carvalho


Como as águas desse rio
Correm para o mar
A liberdade aqui
Um dia há de chegar

Espocando feito pororoca
Arrastando o velho
Desaguando o novo
Inundando de alegria
A cara do povo

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Louis Jean François Lagrenée (1725-1805)

Venus and Nymphs Bathing .

exercício nº 11

Zemaria Pinto


As nuvens do fim de tarde desenham
ícones no firmamento. Os pombos
adejam sobre prédios e automóveis.
O centro da cidade é uma fratura,

uma explosão latente, uma agonia,
prefiguradas na selvagem selva
dos homens-árvores, dos homens-pedras
amanhados em lavras de betume.

Caminho errante pelas ruas úmidas,
entre as ruínas do que um dia fui,
catando sobras do que tenho sido.

A noite faz-se em brilhos e rangidos
furiosos, enquanto as avenidas
escorrem lentamente de meus olhos.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Robert Alexander Hillingford (1825-1904)

The Fairy Dance.

Haicais

Rayder Coelho
Para o meu mestre o haijin Zemaria Pinto


A vela aquece
ilumina e queima a cera
e logo se apaga


O cacto nasce
com flores e espinhos
longe no deserto


Madrugada fria
o crepúsculo luz do dia
hora de despertar


A dama que vem
em busca do sol da manhã
não o vai encontrar


Pombos na praça
comem poeira e migalhas
salvo as pipocas

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Jacques Charlier (1705-1790)

O nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Paródia elegíaca para o poeta Ernesto Penafort
Arthur Engrácio (1927-1997)


Noutros tempos, Ernesto, eras futuro.
A tua figura levemente esguia
Irradiava a todos simpatia,
Nos contagiava o teu sorriso puro.
Vieram ventos tornando o céu escuro.
A tempestade sobre ti rugia
E da árvore da vida ao chão caía
O fruto dos teus sonhos tão maduro!
Ah, se fosses o Deus que nunca morre!
Em vez de andares nesse mundo estranho,
Estarias entre nós curtindo um porre
– Um desses porres que não têm tamanho...

Mas, como a morte é o final de tudo,
Fez-se o teu canto para sempre mudo.

domingo, 5 de julho de 2009

Bartholomeus van der Helst (1613-1670)

Anna du Pire as Granida.

Minha pátria é minha língua

Sá de Miranda (1481-1558)

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo:
Não posso viver comigo
Nem posso fugir de mim.

Com dor, da gente fugia,
Antes que esta assi crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.
Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo
Tamanho imigo de mim?

sábado, 4 de julho de 2009

Guercino (1591-1666)

Allegory of Painting and Sculpture.

Poesia em tradução

O Corvo
Edgar Allan Poe (1809-1949)


Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho
E disse estas palavras tais:
“É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais.”

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguém chamará jamais.

E o rumor triste, vago, brando,
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto e: “Com efeito
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.”

Minhalma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: “Imploro de vós – ou senhor ou senhora –
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo prestemente,
Certificar-me que aí estais.”
Disse: a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta:
Só tu, palavra única e dileta,
Lenora, tu como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro co'a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais tarde; eu, voltando-me a ela:
“Seguramente, há na janela
Alguma coisa que sussurra. Abramos.
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso.
Obra do vento e nada mais.”

Abro a janela e, de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre Corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto
Movendo no ar as suas negras alas.
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo – o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: “Ó tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais:
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Coisa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta,
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é o seu nome: “Nunca mais.”

No entanto, o Corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: “Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora.”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
“Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: “Nunca mais.”

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao Corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera.
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: “Nunca mais.”

Assim, posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe falava mais; mas se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava,
Conjecturando fui, tranquilo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto,
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso.
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: “Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora.”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: Existe acaso um bálsamo no mundo?”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No Éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais.
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa!, clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua,
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua.”
E o Corvo disse: “Nunca mais.”

E o Corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

(Trad. Machado de Assis)

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Manabu Mabe (1924-1997)

Auto-retrato.

10 haicais

Teruko Oda


Dia de descanso –
Vem da serra sem descanso
canto da araponga.

Arara, arara...
Vê findar mais um dia
o pássaro preso.

Guirlandas ao sol –
Um beija-flor pesquisando
flores de cetim.

Um quê de inquietude
no balé das borboletas –
Tarde de outono.

Chega com o vento
um insistente chamado –
Cigarra de outono.

Chego de mansinho –
Aumenta os olhos já grandes
a coruja-preta.

Quietude na serra –
Canta ao fraco sol de inverno
o fogo-pagou.

Gaivotas se agitam –
Onde o céu e o mar se encontram,
jangadas à vista.

Noite de insônia –
O grilo atrás da janela
também sem sono.

Tudo muito quieto –
O canto do inhambu-preto
sonoro... profundo.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

William Etty (1787-1849)

Venus and her satellites.

Zona Franca

Simão Pessoa


Esta zona nunca foi franca
mas falsa:
com seu estilo decadente
de art noveau sem graça.

Ali onde havia macacaúba,
marupá, louro e andiroba
hoje é só vidro fumé
(concreto armado
com portas pantográficas
e dégradé).

Ali onde nadava o matrinxã,
piramutaba, tucunaré e jaraqui
hoje é só veio de lama
(esgotos fétidos
com suas imundas
ratazanas).

Ali onde cantava o japiim,
pipira, curió, uirapuru
hoje é só banco de mármore
(carrinho de pipoca
com a praça da Matriz
e da Saudade).

Ali onde andava o tracajá
capitari, iaçá e cabeçudo
hoje é só vão de dentro
(urubu sobrevoando
com cunhãs catando
o lixo).

Ali onde comia o caititu,
queixada, tamanduá e capivara
hoje é só desmatamento
(conjuntos do BNH
com gente cabisbaixa
dentro)

esta zona franca nunca passou
de um rendez-vous:
com suas polacas new society
e seus homens-guabiru.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Jean-Simon Berthélemy (1743-1811)

Reclining Bacchante Playing the Cymbals.

as portas

Zemaria Pinto


talvez por influência do Borges à cabeceira,

pela 3a. vez sonhei que voava.

o curioso é que ao contrário das outras vezes

– quando atingi o orgasmo –

caí em um rio pantanoso

apedrejado por duas crianças

que não acreditaram em mim.