Innocence.
Amigos do Fingidor
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Ansiedade Dupla
Gracinete Felinto
O mar olha-me ofegante
Meus olhos ao seu ritmo,
Meus pés tocam as margens
Meu semblante modifica-se
Nesse espelho da água.
Com seu encanto enigmático
Lança sua elevada crista
E a areia é contemplada,
Minhas costas limita-se à brisa,
Beijos de suas ondas melódicas.
Minhas mãos sentem as conchas
Que vêm com anzóis
E as pego entre meus dedos
E as devolvo como parte de mim.
O mar olha-me ofegante
Meus olhos ao seu ritmo,
Meus pés tocam as margens
Meu semblante modifica-se
Nesse espelho da água.
Com seu encanto enigmático
Lança sua elevada crista
E a areia é contemplada,
Minhas costas limita-se à brisa,
Beijos de suas ondas melódicas.
Minhas mãos sentem as conchas
Que vêm com anzóis
E as pego entre meus dedos
E as devolvo como parte de mim.
segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Estante do tempo
Saudade
Guimarães de Paula (1932-1996)
Um gosto antigo de lua
veio-me até a memória.
Aves mortas renasceram
no canto forte e metálico.
O vento trouxe os fantasmas
e os olhos riram de novo
o riso filho da infância
à aproximação de um boneco.
Tudo porque na lembrança
coisas, gestos e palavras
conservaram forma e cor.
Guimarães de Paula (1932-1996)
Um gosto antigo de lua
veio-me até a memória.
Aves mortas renasceram
no canto forte e metálico.
O vento trouxe os fantasmas
e os olhos riram de novo
o riso filho da infância
à aproximação de um boneco.
Tudo porque na lembrança
coisas, gestos e palavras
conservaram forma e cor.
domingo, 28 de novembro de 2010
Minha pátria é minha língua
Poemeto erótico
Manuel Bandeira (1886-1968)
Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em cantigas se derrama...
Volúpia da água e da chama...
A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...
Manuel Bandeira (1886-1968)
Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...
Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...
Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...
Teu corpo é a brasa do lume...
Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...
É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em cantigas se derrama...
Volúpia da água e da chama...
A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...
Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...
sábado, 27 de novembro de 2010
Poesia em tradução
Como o touro ao deserto vai fugido
Ausiàs March (1397-1459)
Como o touro ao deserto vai fugido
se vencido por seu igual, que o força,
não volta até recuperada a força
para destruir quem o haja ofendido,
assim com me afastar de ti condiz,
pois teu gesto o meu brio tem confundido:
não voltarei até que haja vencido
tal medo que me impede ser feliz.
(Trad. Fábio Aristimunho Vargas)
Ausiàs March (1397-1459)
Como o touro ao deserto vai fugido
se vencido por seu igual, que o força,
não volta até recuperada a força
para destruir quem o haja ofendido,
assim com me afastar de ti condiz,
pois teu gesto o meu brio tem confundido:
não voltarei até que haja vencido
tal medo que me impede ser feliz.
(Trad. Fábio Aristimunho Vargas)
sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Pandemos (Soneto 1 a Afrodite Anadiómena)
Jorge de Sena (1919-1978)
Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!
Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrrica donstália penicela,
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão bolíneos, ó primana!
Dentívolos palpículos, baissai!
lingâmicos dolins, refucarai!
Por mamivornas contumai a veste!
E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.
Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!
Que vúlcios defuratos, que inumana
sussúrrica donstália penicela,
às trícotas relesta demiquela,
fissivirão bolíneos, ó primana!
Dentívolos palpículos, baissai!
lingâmicos dolins, refucarai!
Por mamivornas contumai a veste!
E, quando prolifarem as sangrárias,
lambidonai tutílicos anárias,
tão placitantos como o pedipeste.
quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Poética I
Alencar e Silva
Não o poema-verso simplesmente,
mas o poema-coisa, sim: substância
inefável, sim: coisa que funcione
como relógio e o que ele preconiza.
Assim, sem asco aceito-o integral
como uma pedra ou coisa-viva incômoda
que fere e entanto dá-se em forma e gosto
à natureza que a urdiu. Poema:
eia! deserto povoado. Fruto
onde a fome espreitava a presa. Chuva
onde a sede lavrava seu incêndio.
Incessante doar-se em ponte e veículo
ao evento da coisa – corpo vivo
intato sobre as águas do poema.
Não o poema-verso simplesmente,
mas o poema-coisa, sim: substância
inefável, sim: coisa que funcione
como relógio e o que ele preconiza.
Assim, sem asco aceito-o integral
como uma pedra ou coisa-viva incômoda
que fere e entanto dá-se em forma e gosto
à natureza que a urdiu. Poema:
eia! deserto povoado. Fruto
onde a fome espreitava a presa. Chuva
onde a sede lavrava seu incêndio.
Incessante doar-se em ponte e veículo
ao evento da coisa – corpo vivo
intato sobre as águas do poema.
quarta-feira, 24 de novembro de 2010
Dabacuri – amazônica 27
Zemaria Pinto
trocadilho tolo:
a lua Jaci levanta
cheia, no horizonte
lago Espelho da Lua,
conversa em volta do fogo
– plenilúnio
trocadilho tolo:
a lua Jaci levanta
cheia, no horizonte
lago Espelho da Lua,
conversa em volta do fogo
– plenilúnio
terça-feira, 23 de novembro de 2010
Catedrais de Vidro
Michele Pacheco
Flechas flamejantes
Chuva de fogo.
Ódio que cega.
Tempestades de pedras
No deserto sombrio.
Fria solidão.
Dilúvio de ácido
No oceano inveja.
Pobre alma.
Vendaval atônito
Pragas da ambição.
Triste mundo.
Desejada proteção
Jamais falha.
Redoma sagrada
Imaculada.
Beleza, paz
Paraíso.
Catedrais de vidro
Santuários refratários
Onde habitam
Sacerdotes de diamantes
Nas fontes balsâmicas
Do divino amor
Anjos de luz
Arcanjos que guardam
Catedrais de vidro
Flechas flamejantes
Chuva de fogo.
Ódio que cega.
Tempestades de pedras
No deserto sombrio.
Fria solidão.
Dilúvio de ácido
No oceano inveja.
Pobre alma.
Vendaval atônito
Pragas da ambição.
Triste mundo.
Desejada proteção
Jamais falha.
Redoma sagrada
Imaculada.
Beleza, paz
Paraíso.
Catedrais de vidro
Santuários refratários
Onde habitam
Sacerdotes de diamantes
Nas fontes balsâmicas
Do divino amor
Anjos de luz
Arcanjos que guardam
Catedrais de vidro
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Estante do tempo
Últimos momentos de D. Quixote
Paulino de Brito (1858-1919)
Morir cuerdo y vivir loco...
Cervantes – El Quijote
À cabeceira o bacharel e o cura;
Sancho, todo choroso, aos pés da cama;
o barbeiro, a sobrinha e a velha ama
além um pouco, em lúgubre postura.
Despojado de lança e de armadura,
eis como aquele herói de eterna fama,
já vendo a Morte, que a terreiro o chama,
vai dar fim à sua última aventura.
Lembra-se então do tempo em que ansioso
de acometer gigantes, pavoroso
procurava-os montado em Rocinante.
Lembra e sorri: por fim reconhecera
que no mundo de anões, em que vivera,
ele só, D. Quixote, era o gigante!
Paulino de Brito (1858-1919)
Morir cuerdo y vivir loco...
Cervantes – El Quijote
À cabeceira o bacharel e o cura;
Sancho, todo choroso, aos pés da cama;
o barbeiro, a sobrinha e a velha ama
além um pouco, em lúgubre postura.
Despojado de lança e de armadura,
eis como aquele herói de eterna fama,
já vendo a Morte, que a terreiro o chama,
vai dar fim à sua última aventura.
Lembra-se então do tempo em que ansioso
de acometer gigantes, pavoroso
procurava-os montado em Rocinante.
Lembra e sorri: por fim reconhecera
que no mundo de anões, em que vivera,
ele só, D. Quixote, era o gigante!
domingo, 21 de novembro de 2010
Minha pátria é minha língua
O velho palácio
Gomes Leal (1848-1921)
A Teófilo Braga
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinhais pregar.
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas...
Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...
Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...
Como nessa varanda apodrecida,
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta.
Como nessa varanda apodrecida...
Gomes Leal (1848-1921)
A Teófilo Braga
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira-mar...
Donde se avistam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinhais pregar.
Houve outrora um palácio, hoje em ruínas...
Nesse triste palácio inabitável,
As janelas sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite, em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...
Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida de chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...
Como nessa varanda apodrecida,
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta.
Como nessa varanda apodrecida...
sábado, 20 de novembro de 2010
Poesia em tradução
Meu Cavaleiro
José Martí (1853-1895)
De manhã cedo
meu pequerrucho
me despertava
com um grande beijo.
Logo montado
sobre meu peito
freios forjava
com meus cabelos.
Ébrios de gozo
tanto eu como ele
me esporeava
meu cavaleiro:
que suave espora
seus dois pés frescos!
E como ria
meu cavaleiro!
Como eu beijava
seus pés pequenos
dois pés que cabem
juntos num beijo!
(Trad. Henriqueta Lisboa)
José Martí (1853-1895)
De manhã cedo
meu pequerrucho
me despertava
com um grande beijo.
Logo montado
sobre meu peito
freios forjava
com meus cabelos.
Ébrios de gozo
tanto eu como ele
me esporeava
meu cavaleiro:
que suave espora
seus dois pés frescos!
E como ria
meu cavaleiro!
Como eu beijava
seus pés pequenos
dois pés que cabem
juntos num beijo!
(Trad. Henriqueta Lisboa)
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010
A negra
Caetano de Costa Alegre (1864-1890)
Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,
Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.
Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.
No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.
Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;
Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.
Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.
Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.
Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,
Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.
Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.
No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.
Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;
Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.
Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.
Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.
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Sexta-feira
quinta-feira, 18 de novembro de 2010
a metafísica é uma mocinha
Simão Pessoa
a metafísica é uma mocinha
muito bonita e prendada
não tivesse um caso nebuloso
com o processo ôntico do tempo
juro que trepava com ela
a metafísica é uma mocinha
muito bonita e prendada
não tivesse um caso nebuloso
com o processo ôntico do tempo
juro que trepava com ela
quarta-feira, 17 de novembro de 2010
noturno, opus 1
Zemaria Pinto
tua sombra salta do chão
e vai além da minha cabeça
teu olho majestoso e nu
clareia o espaço em minha volta
estás nua e todo teu corpo brilha
indiferente à incandescência dos faróis
e ao gemer dos edifícios em chamas
(1974)
tua sombra salta do chão
e vai além da minha cabeça
teu olho majestoso e nu
clareia o espaço em minha volta
estás nua e todo teu corpo brilha
indiferente à incandescência dos faróis
e ao gemer dos edifícios em chamas
(1974)
terça-feira, 16 de novembro de 2010
Correnteza
Laís Fernanda Borges
O rio dita o ritmo
Com suas águas,
Que nunca são as mesmas.
O rio de nossas vidas
É onipresente relógio.
Onde o conjunto
Hora,
Minuto
E segundo
Formam a correnteza
Cuja água parece a mesma,
Mas não é a que se vê agora.
Ao acabar este poema
O que você viu
Vai pertencer ao ontem:
O segundo que passou
Já virou lembrança,
Cristalizada na memória
E enterrada no coração.
O rio dita o ritmo
Com suas águas,
Que nunca são as mesmas.
O rio de nossas vidas
É onipresente relógio.
Onde o conjunto
Hora,
Minuto
E segundo
Formam a correnteza
Cuja água parece a mesma,
Mas não é a que se vê agora.
Ao acabar este poema
O que você viu
Vai pertencer ao ontem:
O segundo que passou
Já virou lembrança,
Cristalizada na memória
E enterrada no coração.
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Estante do tempo
A Muhuraida, Canto 6º (fragmentos)
Henrique João Wilkens (17??-18??)
Mas já na Habitação do eterno dano,
O Príncipe das Trevas, Monstro informe,
Já no Sucesso vendo todo Arcano
Da Providência Santa, deu o enorme
Sinal acostumado, que do humano
Inimigo Esquadrão, negro, disforme,
Veloz, qual pensamento, logo ouvido,
Se ajunta, na aparência, destemido.
Eia, lhes diz, briosos Companheiros!
Dignos todos de eterna, melhor sorte!
Já que igualar quisestes os primeiros,
A aquele Deus, que rege a Vida, a Morte,
Já que poder só imenso, prisioneiros
Fazer-vos pode, e por Barreira forte,
O imenso espaço por, que daqui dista
Ao Céu, que já se nega à nossa Vista.
Os olhos levantai, vede essas Feras,
(Pois serem racionais, só a forma indica)
Já quase a substituir-nos nas Esferas
Celestes destinadas; já publica
Veloz a Fama, conjecturas meras,
Que só a credulidade justifica.
Mas temo, desprezada esta aparência,
Se realize a ruína co’evidência.
Ide pois precaver a contingência,
Não se perca da Presa a melhor parte;
As luzes lhe ofuscai da inteligência,
Empenhe-se Valor, destreza, e Arte.
Não se atribua nunca a Negligência
O desprezo do Aviso, pois reparte
O injusto Fado com desigualdade,
Poder, Ventura, e infelicidade.
Qual de Etna, ou de Vesúvio vasta entranha,
Fermentando indigesta Massa ardente,
Da repleção efeito, arroja estranha,
Temível, larga, ignífera Torrente;
No trânsito impetuoso quanto apanha
A cinzas reduzindo; indiferente
À dura penha, à flor, Jardim vistoso,
Casal humilde ou Povo numeroso.
Do Império assim das Trevas vai saindo,
Qual Torrente a Coorte, em Chama em volta;
O denso fumo os Ares já cobrindo,
Pestífero vapor, intenso solta.
Nas vastas Regiões se difundindo
Vai do Amazonas, Infernal Escolta;
Dos Átomos parece a qualidade
Neles se identifica, e quantidade.
(...)
Já aflitos, pensativos, despertando,
De ideia tal enfim preocupados;
Só mortes e vinganças respirando,
Já lhes tardava os ver executados.
Mas o Anjo Tutelar, que vigiando
Estava, e lamentando os enganados,
Armado do poder do Onipotente,
Tudo faz que se mude de repente.
Inspira a todos novo ardor, desejo,
De discernir o engano, e a verdade;
Ao Tentador infame, e seu Cortejo,
Sepulta na infeliz eternidade.
Faz, que ao rancor, universal festejo,
Entre os Muhras se siga, a brevidade
Do Embarque se procure; realizados
O fim proposto, os meios desejados.
Henrique João Wilkens (17??-18??)
Mas já na Habitação do eterno dano,
O Príncipe das Trevas, Monstro informe,
Já no Sucesso vendo todo Arcano
Da Providência Santa, deu o enorme
Sinal acostumado, que do humano
Inimigo Esquadrão, negro, disforme,
Veloz, qual pensamento, logo ouvido,
Se ajunta, na aparência, destemido.
Eia, lhes diz, briosos Companheiros!
Dignos todos de eterna, melhor sorte!
Já que igualar quisestes os primeiros,
A aquele Deus, que rege a Vida, a Morte,
Já que poder só imenso, prisioneiros
Fazer-vos pode, e por Barreira forte,
O imenso espaço por, que daqui dista
Ao Céu, que já se nega à nossa Vista.
Os olhos levantai, vede essas Feras,
(Pois serem racionais, só a forma indica)
Já quase a substituir-nos nas Esferas
Celestes destinadas; já publica
Veloz a Fama, conjecturas meras,
Que só a credulidade justifica.
Mas temo, desprezada esta aparência,
Se realize a ruína co’evidência.
Ide pois precaver a contingência,
Não se perca da Presa a melhor parte;
As luzes lhe ofuscai da inteligência,
Empenhe-se Valor, destreza, e Arte.
Não se atribua nunca a Negligência
O desprezo do Aviso, pois reparte
O injusto Fado com desigualdade,
Poder, Ventura, e infelicidade.
Qual de Etna, ou de Vesúvio vasta entranha,
Fermentando indigesta Massa ardente,
Da repleção efeito, arroja estranha,
Temível, larga, ignífera Torrente;
No trânsito impetuoso quanto apanha
A cinzas reduzindo; indiferente
À dura penha, à flor, Jardim vistoso,
Casal humilde ou Povo numeroso.
Do Império assim das Trevas vai saindo,
Qual Torrente a Coorte, em Chama em volta;
O denso fumo os Ares já cobrindo,
Pestífero vapor, intenso solta.
Nas vastas Regiões se difundindo
Vai do Amazonas, Infernal Escolta;
Dos Átomos parece a qualidade
Neles se identifica, e quantidade.
(...)
Já aflitos, pensativos, despertando,
De ideia tal enfim preocupados;
Só mortes e vinganças respirando,
Já lhes tardava os ver executados.
Mas o Anjo Tutelar, que vigiando
Estava, e lamentando os enganados,
Armado do poder do Onipotente,
Tudo faz que se mude de repente.
Inspira a todos novo ardor, desejo,
De discernir o engano, e a verdade;
Ao Tentador infame, e seu Cortejo,
Sepulta na infeliz eternidade.
Faz, que ao rancor, universal festejo,
Entre os Muhras se siga, a brevidade
Do Embarque se procure; realizados
O fim proposto, os meios desejados.
domingo, 14 de novembro de 2010
Minha pátria é minha língua
Retrato
Cecília Meireles (1901-1964)
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles (1901-1964)
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
– Em que espelho ficou perdida
a minha face?
sábado, 13 de novembro de 2010
É tão gentil e tão honesto o ar
Dante Alighieri (1265-1321)
É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.
Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.
Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.
E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d’alma vai dizer: “Suspira!”
(Trad. Ivo Barroso)
É tão gentil e tão honesto o ar
de minha Dama, quando alguém saúda,
que toda boca vai ficando muda
e os olhos não se afoitam de a fitar.
Ela assim vai sentindo-se louvar
na piedosa humildade em que se escuda,
qual fosse um anjo que dos céus se muda
para uma prova dos milagres dar.
Tão afável se mostra a quem a mira
que o olhar infunde ao coração dulçores
que só não sente quem jamais olhou-a.
E quando fala, dos seus lábios voa
Uma aura suave, trescalando amores,
que dentro d’alma vai dizer: “Suspira!”
(Trad. Ivo Barroso)
sexta-feira, 12 de novembro de 2010
Hoje não
Anne Lucy
Hoje não quero fazer nada!
Tirem-me daqui as convenções
O costume e a moral
Hoje quero ser eu em estado vegetal!
Quero não pensar demais
Não ter preocupações
Sair do convencional
Tirar-me as ocupações
Buscar apenas a felicidade
Com muito ócio e banalidades
Uma vida dionisíaca
Ser de Baco uma amiga
Hoje me quero vazia!
Estou cansada de transbordar
Diversos sentimentos
Em risos e lágrimas me acabar
Quero ser niilista, egoísta
Narcisista, vigarista, masoquista
Rotulem-me, decifrem-me
Quem poderá me absorver?
Hoje é dia de feira das emoções
Quem pagará por um sentimento?
Eu transformo tudo em canções
E escapo de qualquer julgamento.
Hoje não quero fazer nada!
Tirem-me daqui as convenções
O costume e a moral
Hoje quero ser eu em estado vegetal!
Quero não pensar demais
Não ter preocupações
Sair do convencional
Tirar-me as ocupações
Buscar apenas a felicidade
Com muito ócio e banalidades
Uma vida dionisíaca
Ser de Baco uma amiga
Hoje me quero vazia!
Estou cansada de transbordar
Diversos sentimentos
Em risos e lágrimas me acabar
Quero ser niilista, egoísta
Narcisista, vigarista, masoquista
Rotulem-me, decifrem-me
Quem poderá me absorver?
Hoje é dia de feira das emoções
Quem pagará por um sentimento?
Eu transformo tudo em canções
E escapo de qualquer julgamento.
quinta-feira, 11 de novembro de 2010
Circunavegação
Donaldo Mello
Estrada de rio
linha d’água
sem número.
Carta que não chegou,
sobrescrição inocente,
curtiu polis-posteaux.
Tempos idos.
Pra seu governo,
quantas moradas há entre rios:
“Vivo no Solimões.
Nasci na costa da Cabaleana,
em frente à ilha do Marrecão,
e próximo à ilha do Supiá.
Terra do Seu Telles”, bem lá...
Estradas de rio,
linhas d’água.
Inúmeros caminhos amazônicos.
inimagináveis endereços que
banzeiros levam por um fio.
Vida pulsando.
Amazonas boreal
latitude austral.
Ao prof. Tenório Telles, rousseauniano-amazônico
Estrada de rio
linha d’água
sem número.
Carta que não chegou,
sobrescrição inocente,
curtiu polis-posteaux.
Tempos idos.
Pra seu governo,
quantas moradas há entre rios:
“Vivo no Solimões.
Nasci na costa da Cabaleana,
em frente à ilha do Marrecão,
e próximo à ilha do Supiá.
Terra do Seu Telles”, bem lá...
Estradas de rio,
linhas d’água.
Inúmeros caminhos amazônicos.
inimagináveis endereços que
banzeiros levam por um fio.
Vida pulsando.
Amazonas boreal
latitude austral.
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Dabacuri – amazônica 26
Zemaria Pinto
estrada de barro –
o clarão da lua cheia
antecipa a festa
buscando o minguante,
o luzeiro da cidade
fica para trás
estrada de barro –
o clarão da lua cheia
antecipa a festa
buscando o minguante,
o luzeiro da cidade
fica para trás
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Mistério
Rosiane Cardoso Correa
Quero ser o teu mistério
Em meio à multidão
Te procurar e te sentir, tão perto e ao mesmo tempo tão distante
Dos olhos do coração.
Quero ser teu mistério
E desvendar teus mais profundos segredos,
Lapidar a pedra mais preciosa que a natureza já inventou.
Quero ser teu mistério
Por mais que o tempo passe
E a incerteza do concreto
Será a busca constante
em meio à incompletude do ser.
Quero ser teu mistério
E poder perceber o quanto o universo fica pequeno
Quando os mundos se juntam
Formando a mais perfeita harmonia,
Inexplicável ao humano...
Quero ser teu mistério
Acreditando na força interior que emana entre as almas,
Que nos coloca a prova de que o nosso ser
Depende da mística das relações
E ao mesmo tempo da incerteza do que é real.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Estante do tempo
A medida do azul
Ernesto Penafort (1936-1992)
A medida do azul é o estender-se
do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto – já por ser absoluto.
A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.
A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,
pois ali tem o mundo o seu ovário:
e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável.
Ernesto Penafort (1936-1992)
A medida do azul é o estender-se
do olhar por sobre os seres. Esse arguto
perceber que se tem de não mover-se
o objeto – já por ser absoluto.
A medida do azul é ver um luto
contido em toda flor e o abster-se
cada qual de assumir seu tom enxuto
e noutro que o não seu absorver-se.
A medida do azul, pelo contrário,
não é ver no horizonte o fim do olhar,
mas o ter desta vida aonde chegar,
pois ali tem o mundo o seu ovário:
e o retorno acontece, sempre estável,
eis que o azul é o início do infindável.
domingo, 7 de novembro de 2010
Minha pátria é minha língua
Poema barroco
Murilo Mendes (1901-1975)
Os cavalos da aurora derrubando pianos
Avançam furiosamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas
E ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias
Enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros
Atravessam o céu de açucenas e bronze.
Preciso conhecer o meu sistema de artérias
E saber até que ponto me sinto limitado
Pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,
Pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros,
Pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas,
E pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade.
Preciso conhecer os porões da minha miséria,
Tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,
Ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,
E amordaçar a indefesa e nua castidade.
É então que viro a bela imagem azul-vermelha:
Apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.
Murilo Mendes (1901-1975)
Os cavalos da aurora derrubando pianos
Avançam furiosamente pelas portas da noite.
Dormem na penumbra antigos santos com os pés feridos,
Dormem relógios e cristais de outro tempo, esqueletos de atrizes.
O poeta calça nuvens ornadas de cabeças gregas
E ajoelha-se ante a imagem de Nossa Senhora das Vitórias
Enquanto os primeiros ruídos de carrocinhas de leiteiros
Atravessam o céu de açucenas e bronze.
Preciso conhecer o meu sistema de artérias
E saber até que ponto me sinto limitado
Pelos sonhos a galope, pelas últimas notícias de massacres,
Pelo caminhar das constelações, pela coreografia dos pássaros,
Pelo labirinto da esperança, pela respiração das plantas,
E pelos vagidos da criança recém-parida na maternidade.
Preciso conhecer os porões da minha miséria,
Tocar fogo nas ervas que crescem pelo corpo acima,
Ameaçando tapar meus olhos, meus ouvidos,
E amordaçar a indefesa e nua castidade.
É então que viro a bela imagem azul-vermelha:
Apresentando-me o outro lado coberto de punhais,
Nossa Senhora das Derrotas, coroada de goivos,
Aponta seu coração e também pede auxílio.
sábado, 6 de novembro de 2010
Poesia em tradução
O Junco e o cipreste
D. Guillermo Gana (datas desconhecidas)
Ao lúgubre cipreste em voz plangente
O junco melancólico dizia:
– Que triste sorte a minha!
Ergui-me tão alegre e tão contente
Quando a alvorada vinha!
E já sem força e já sem energia
Curvo a cabeça... E lânguido e sozinho
Sinto que vou morrer. Ah! por que a sorte
Dando-te vida, só me guarda morte?
E o cipreste dizia:
– A dor foi sempre eterna,
Mas a fortuna só perdura um dia!
E o junco respondia:
Em ti simbolizaram a tristeza,
Em mim somente o anelo
Dos que no amor esperam.
Como é que nunca dobras a cabeça,
Nem a raiva das chuvas e dos ventos
A cor sequer te alteram?
Daqueles que de tudo desesperam
Para lembrar a lúgubre aflição,
Só existe uma cor, disse o cipreste...
E se jamais tu viste
Curvar minha folhagem para o chão...
É que desprezo o mundo baixo e triste
E mergulho a cabeça n’amplidão.
(Trad. Castro Alves)
D. Guillermo Gana (datas desconhecidas)
Ao lúgubre cipreste em voz plangente
O junco melancólico dizia:
– Que triste sorte a minha!
Ergui-me tão alegre e tão contente
Quando a alvorada vinha!
E já sem força e já sem energia
Curvo a cabeça... E lânguido e sozinho
Sinto que vou morrer. Ah! por que a sorte
Dando-te vida, só me guarda morte?
E o cipreste dizia:
– A dor foi sempre eterna,
Mas a fortuna só perdura um dia!
E o junco respondia:
Em ti simbolizaram a tristeza,
Em mim somente o anelo
Dos que no amor esperam.
Como é que nunca dobras a cabeça,
Nem a raiva das chuvas e dos ventos
A cor sequer te alteram?
Daqueles que de tudo desesperam
Para lembrar a lúgubre aflição,
Só existe uma cor, disse o cipreste...
E se jamais tu viste
Curvar minha folhagem para o chão...
É que desprezo o mundo baixo e triste
E mergulho a cabeça n’amplidão.
(Trad. Castro Alves)
sexta-feira, 5 de novembro de 2010
O fazedor de versos
Eliakin Rufino
Hoje chegou na cidade
um poeta fingidor
um fazedor de versos
um cantor.
Escreve versos de amor
para os amantes
escreve versos de adeus
para os distantes.
Versos de esperança
e de carinho
pra quem necessita de luz
em seu caminho.
Verso de todo tamanho
para qualquer situação
verso água-com-açúcar
verso bala de canhão.
Hoje chegou na cidade
um poeta fingidor
um fazedor de versos
um cantor.
Escreve versos de amor
para os amantes
escreve versos de adeus
para os distantes.
Versos de esperança
e de carinho
pra quem necessita de luz
em seu caminho.
Verso de todo tamanho
para qualquer situação
verso água-com-açúcar
verso bala de canhão.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
As tetas do povo
Dori Carvalho
Fiquem aí os senhores
Mamando nas tetas
do povo
Enquanto o povo
Mama nas tetas
das pedras
cuidado senhores muito cuidado
qualquer dia
as pedras viram armas
qualquer dia
a fome vira raiva
qualquer dia
a casa cai
Fiquem aí os senhores
Mamando nas tetas
do povo
Enquanto o povo
Mama nas tetas
das pedras
cuidado senhores muito cuidado
qualquer dia
as pedras viram armas
qualquer dia
a fome vira raiva
qualquer dia
a casa cai
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
negra
Zemaria Pinto
na praia eu vi
o sol
na água doce eu bebi
o sal
dos teus seios negros
na praia eu bebi
o sal
na água fria eu queimei
o sol
dos teus seios negros
as civilizações perdidas
o medo
teu corpo negro
no mato
jaz
vivo de amor
candente
terra fecunda
raiz brotando do chão negro
na negrura do horizonte
se reflete teu destino
eu traço o caminho vivo
eu vivo o caminho-espaço
no vazio do teu sonho
eu piso o caminho-vida
e em teu ventre me acalentas
no espaço das tuas pernas
há o último delírio
tua língua vermelha rasga a praia
teu grito afoga o rio
teus olhos vigiam o mundo
(1974)
na praia eu vi
o sol
na água doce eu bebi
o sal
dos teus seios negros
na praia eu bebi
o sal
na água fria eu queimei
o sol
dos teus seios negros
as civilizações perdidas
o medo
teu corpo negro
no mato
jaz
vivo de amor
candente
terra fecunda
raiz brotando do chão negro
na negrura do horizonte
se reflete teu destino
eu traço o caminho vivo
eu vivo o caminho-espaço
no vazio do teu sonho
eu piso o caminho-vida
e em teu ventre me acalentas
no espaço das tuas pernas
há o último delírio
tua língua vermelha rasga a praia
teu grito afoga o rio
teus olhos vigiam o mundo
(1974)
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Gestos
Ana Peixoto
Mãos que se apertam
num diálogo intenso
Olhos que se fitam
com amor imenso
Lábios que se unem
ao sabor de um beijo ardente
São gestos que resumem
sentimentos ferventes.
É a vida.
É o mundo.
É a caminhada de ida,
Na eternidade de um segundo.
Mãos que se apertam
num diálogo intenso
Olhos que se fitam
com amor imenso
Lábios que se unem
ao sabor de um beijo ardente
São gestos que resumem
sentimentos ferventes.
É a vida.
É o mundo.
É a caminhada de ida,
Na eternidade de um segundo.
segunda-feira, 1 de novembro de 2010
Estante do tempo
Oráculo
L. Ruas (1931-2000)
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Daquele que é amado por mim.
Tenho muita pena.
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Porque aquele que eu amar
Jamais
Terá um só momento de paz.
Aquele que eu mais amar
Jamais terá dias tranquilos
Nem mesmo aos domingos
Ele poderá se divertir.
Por exemplo, não terá
Aquela paz necessária que é preciso ter
Para passar um dia inteiro, de calção,
Num balneário. E se sentir feliz.
E, à noite, não frequentará buates
Nem “dancings”, nem “night clubs”,
Porque já não terá mais em si
A tranquilidade inócua dos felizes.
Não digo que ele não vá. Isso não.
Ele vai, mas, não como os outros vão.
Porque o que ele busca nessas coisas
Não é mais felicidade. Nem prazer.
O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.
Porque eu o amo de tal modo
Que ele quer me encontrar em toda parte.
Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,
Fica besta que nem poeta enamorado:
Me julga ver em toda parte e em todo mundo.
E não se cansa nunca de me procurar.
Por ele, nunca mais me largaria
Nunca mais estaria longe de mim.
E este desejo de estar perto de mim,
Sempre,
É que o fere e o maltrata.
Um dos que eu mais amei, foi Paulo,
Aquele judeu nascido em Tarso.
Outro que também muito amei foi Francisco.
Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.
E vocês bem sabem as tolices que fizeram.
Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor
Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:
Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai
Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.
Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...
Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.
É por isso, disse-me o meu Deus,
Que eu não amo todos os homens igualmente.
Porque eu não sei amar de outro modo
Só sei amar assim, desmedidamente.
Não sei amar como amam os homens “comportados”:
Com elegância , com medida, com “finesse”.
Porque eles são feitos com medida e com limites.
Mas eu sou o “sem limites”e o “sem medidas”.
Por isso não amo todos igualmente:
Escolho entre muitos os que podem
Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.
Porque depois de algum tempo ficam fracos
E consumidos pelo meu amor que os devora.
Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam
Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.
Mas eles não sabem muito bem o que desejam.
Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor
Porque são limitados e muito fracos.
Por isso não amarei todos igualmente
Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.
Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,
Que querem explicar as cantigas de João da Cruz
E as visões da minha Tereza D’Avila
Como um simples caso de psicopatologia.
E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse
Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,
Um certo clima de paz e de sossego
Para que as coisas fossem feitas devagar
Como convém que se faça entre os humanos.
Porque só eu sei fazer, com rapidez,
Coisas bem feitas, bem perfeitas.
Mas os homens não sabem e é preciso,
Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.
Mas, aqueles que eu amo perdem a paz
E querem fazer tudo logo de uma vez.
E não deixam mais ninguém ficar em paz.
Atrapalham mesmo os meus Pontífices
No governo da Igreja se eu não chego
A tempo de impedir que assim o façam.
Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.
E eu os quero assim. Mas, nem sempre
Meus Pontífices são meus amados também.
Tenho muita pena, disse Deus,
Daquele que é amado por mim.
Porque é muito triste ver um homem
Pequeno, limitado, circunscrito,
Querendo satisfazer o meu amor
Ilimitado.
Tenho muita pena, disse Deus,
E, muitas vezes, também choro
Quando, a sós, ele chora,
Me suplica e implora
Para que me afaste dele.
Tenho muita pena, mas, não posso
Fazer nada por ele senão mesmo
Mais amá-lo, mesmo que não queira.
L. Ruas (1931-2000)
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Daquele que é amado por mim.
Tenho muita pena.
Tenho pena, disse-me o meu Deus,
Porque aquele que eu amar
Jamais
Terá um só momento de paz.
Aquele que eu mais amar
Jamais terá dias tranquilos
Nem mesmo aos domingos
Ele poderá se divertir.
Por exemplo, não terá
Aquela paz necessária que é preciso ter
Para passar um dia inteiro, de calção,
Num balneário. E se sentir feliz.
E, à noite, não frequentará buates
Nem “dancings”, nem “night clubs”,
Porque já não terá mais em si
A tranquilidade inócua dos felizes.
Não digo que ele não vá. Isso não.
Ele vai, mas, não como os outros vão.
Porque o que ele busca nessas coisas
Não é mais felicidade. Nem prazer.
O que ele quer mesmo é me encontrar em tudo isso.
Porque eu o amo de tal modo
Que ele quer me encontrar em toda parte.
Aquele que eu amo, disse-me o meu Deus,
Fica besta que nem poeta enamorado:
Me julga ver em toda parte e em todo mundo.
E não se cansa nunca de me procurar.
Por ele, nunca mais me largaria
Nunca mais estaria longe de mim.
E este desejo de estar perto de mim,
Sempre,
É que o fere e o maltrata.
Um dos que eu mais amei, foi Paulo,
Aquele judeu nascido em Tarso.
Outro que também muito amei foi Francisco.
Aquele nascido em Assis, na Úmbria – Itália.
E vocês bem sabem as tolices que fizeram.
Se a causa de tudo aquilo não fosse meu amor
Eu vos digo que não aprovaria o que fizeram:
Não aprovaria ter Francisco brigado com seu pai
Nem Paulo ter apelado, tolamente, para César.
Isso não são coisas que um homem de bem deva fazer...
Mas, enfim, o culpado fui eu que muito amei.
É por isso, disse-me o meu Deus,
Que eu não amo todos os homens igualmente.
Porque eu não sei amar de outro modo
Só sei amar assim, desmedidamente.
Não sei amar como amam os homens “comportados”:
Com elegância , com medida, com “finesse”.
Porque eles são feitos com medida e com limites.
Mas eu sou o “sem limites”e o “sem medidas”.
Por isso não amo todos igualmente:
Escolho entre muitos os que podem
Suportar as minhas exigências. Os mais fortes.
Porque depois de algum tempo ficam fracos
E consumidos pelo meu amor que os devora.
Eu sei, disse-me o meu Deus, que muitos gostariam
Que eu os amasse como amei Francisco e Paulo.
Mas eles não sabem muito bem o que desejam.
Eu sei que eles não resistiriam ao muito amor
Porque são limitados e muito fracos.
Por isso não amarei todos igualmente
Porque mesmo os mais fortes quase não resistem.
Ainda hoje acho graça dos doutores, disse Deus,
Que querem explicar as cantigas de João da Cruz
E as visões da minha Tereza D’Avila
Como um simples caso de psicopatologia.
E, depois, disse Deus, eu mesmo quis que houvesse
Entre os homens e, mesmo, em minha Igreja,
Um certo clima de paz e de sossego
Para que as coisas fossem feitas devagar
Como convém que se faça entre os humanos.
Porque só eu sei fazer, com rapidez,
Coisas bem feitas, bem perfeitas.
Mas os homens não sabem e é preciso,
Por isso, dar-lhes tempo e alguma paz.
Mas, aqueles que eu amo perdem a paz
E querem fazer tudo logo de uma vez.
E não deixam mais ninguém ficar em paz.
Atrapalham mesmo os meus Pontífices
No governo da Igreja se eu não chego
A tempo de impedir que assim o façam.
Porque os meus Pontífices são os meus Pontífices.
E eu os quero assim. Mas, nem sempre
Meus Pontífices são meus amados também.
Tenho muita pena, disse Deus,
Daquele que é amado por mim.
Porque é muito triste ver um homem
Pequeno, limitado, circunscrito,
Querendo satisfazer o meu amor
Ilimitado.
Tenho muita pena, disse Deus,
E, muitas vezes, também choro
Quando, a sós, ele chora,
Me suplica e implora
Para que me afaste dele.
Tenho muita pena, mas, não posso
Fazer nada por ele senão mesmo
Mais amá-lo, mesmo que não queira.
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