Amigos do Fingidor

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

noturno

Zemaria Pinto



noite
o sol ilumina o oriente
a lua cheia incendeia a noite dos trópicos
a luz elétrica transborda pelas ruas
o mercúrio das praças acabou

desacatando todas as possibilidades prováveis
um disco voador pousa no alto da torre do relógio municipal

às 9 horas da noite
todos os namorados estão de línguas dadas
os casados discutem o orçamento familiar
os mais velhos contam estórias
crianças brincam de roda
homens verdes passeiam nas ruas
bebem chope, vão ao cinema

uma guerrilheira assassina um oficial da armada
no portão do cemitério cumprem-se obrigações religiosas
nos jardins do cemitério, por entre as mangueiras
casais adolescentes acariciam a noite
o tempo estaciona para os bêbados
(ontem? hoje?)
na falta de um lugar para amar
pernas entrecruzam-se nos bancos da praça escura

meia-noite
o o. v. i. levanta voo
vampiros devoram a cidade

a esta hora todas as mães estão dormindo
todos os seios estão rígidos
todas as mãos estão suadas
todos os soldados estão atentos
todos os peitos estão arfando
todas as pernas estão cansadas
todos os bêbados estão chorando
– mulheres e homens, todos de pé!

no céu constelações faíscam
uma virgem suicida-se
outra mulher chora sua insônia
um marido flagra um adultério
um vira-latas morde a perna de um guarda-noturno
um pederasta mata uma prostituta
uma missa negra é celebrada
um cientista descobre uma fórmula
um louco mastiga uma rosa
uma criança nasce na calçada
rompem da noite todos os gritos
fogem da cara todos os medos
– a humanidade quer dormir!

um galo canta
a lua já desapareceu por detrás dos armazéns do cais
as mulheres, as meninas da praça agora vão dormir
– também uma mulher insone –
os bêbados apressam-se para o trabalho
na casa funerária não houve um minuto de descanso

neste momento,
independente de todos os calendários e relógios
apenas um fato pode ser dito consumado:
o sol já voltou do oriente

                                         (1975)