Amigos do Fingidor

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

La Naissance de Vénus.

Estante do tempo

Bolero das águas
Anibal Beça (1946-2009)





O passo no compasso dois por quatro
acode meu suplício de afogado
afastando de mim sedento cálice
em submerso bolero de águas tantas.
A sede dança seca na garganta
curtindo signos, fala ressequida
para a língua de couro, lixa tântala,
alisando palavras rebuçadas.
Quanto alfenim no alfanje que se enfeita
para montar as ancas de égua moura.
Lábia flamenca lambe leve as oiças,
é rito muezim ditando a dança:
no dois pra cá me levo em dois pra lá,
nas águas do regaço vou-me e lavo-me.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Valentin Serov (1835-1911)

Portrait of Ida Rubinstein.

Minha pátria é minha língua

Conclusão

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987)




Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?

sábado, 29 de janeiro de 2011

Cristiane Campos

Amazônia.

Poesia em tradução

Visões de Akira Kurosawa
Ana Mercedes Vivas






Milhares de homens
caminham
pelo túnel do silêncio.

Arcanjos da vida galopam
sobre cavalos azuis
desalados?

Um beija-flor desce
pelo raio de luz
até um girassol
enamorado ao vento.

Máscara de sonho,
sombras enlutadas,
pombas brancas
estrelas
para beber o dia
passos de solidão
entre os mortos.


(Trad. Thiago de Mello)

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Walter Shirlaw (1838-1909)

Water Lilies.

Mar e lua

Chico Buarque



Amaram o amor urgente
As bocas salgadas pela maresia
As costas lanhadas pela tempestade
Naquela cidade
Distante do mar
Amaram o amor serenado
Das noturnas praias
Levantavam as saias
E se enluaravam de felicidade
Naquela cidade
Que não tem luar
Amavam o amor proibido
Pois hoje é sabido
– Todo mundo conta –
Que uma andava tonta
Grávida de lua
E outra andava nua
Ávida de mar

E foram ficando marcadas
Ouvindo risadas, sentindo arrepios
Olhando pro rio tão cheio de lua
E que continua
Correndo pro mar
E foram correnteza abaixo
Rolando no leito
Engolindo água
Boiando com as algas
Arrastando folhas
Carregando flores
E a se desmanchar
E foram virando peixes
Virando conchas
Virando seixos
Virando areia
Prateada areia
Com lua cheia
E à beira-mar

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Frank Frazetta (1928-2010)

Nude.

Cuia

Simão Pessoa

(Poema feito a partir de um quadro do artista plástico Turenko Beça)



De longe como Matisse
Que a desnudando vestisse
Ela revela a natureza
Que a esconde por inteiro

E a esconde por inteiro
Do olho que a devassa:
O vão desdobrado em quilha
Recoberto por limalha

De luz é sua textura
Que ao toque se adivinha
Como as bordas da pupila
Refletindo água-marinha

Tem a aparência furtiva
De uma fruta adocicada
Daquela que nos convida
Na a comer – a olhá-la.

De luminosos cristais
Sua curvatura se veste:
O gosto de qualquer fruta
Nela é as dobras da pele

É fruta de carne e osso
Silêncio sonho e medula.
É fruta de mil desejos
Na língua mais que na gula.

É uma paisagem de dunas
Com casulos emborcados.
É uma ópera intestina
De conchas no alagado

É uma onda sem mistério
Tirando arestas da areia.
É uma maçã que mordida
O baixo ventre incendeia

É o ovo da serpente
Como que moldado em pedra.
É a cúpula do teatro
Na sua forma geodésica

No mais não é uma cuia
Arquitetada por Gaudí.
É uma cuia (mas nativa)
De tacacá e açaí.

Que uma bunda não é nunca
O silêncio de uma tela:
É uma vontade profunda
De se perder dentro dela.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

William Bouguereau (1825-1905)

La Vague.

legado

Zemaria Pinto



eis um pedaço de mim,
exposto
feito carne putrefata

eis um pedaço de mim,
ferida
aberta em pus, necrosada

eis um pedaço de mim,
retrato
de todo o horror do passado

eis um pedaço de ti,
devolvido
para que não esqueças de mim


                                              (1978)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898)

Hope.

Avarias

Francisco Calheiros




Não continua sendo útil minha espera.

Conquanto não valha a pena fazê-lo,

dou-me por realizado e sem mágoas.

Faz-se mister, porém, que as mágoas

não me exijam passaporte

nem me façam misantropo

das avarias que deixaste.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Erika Meriaux

Birth of Venus.

Estante do tempo

Estudo XII
Alcides Werk (1934-2003)




Impossível voltar. A caminhada
já foi longe demais, e não me encontro.
Há marcas fundas do caminho antigo,
mas não posso sentir, vivo agitado.

Vejo em volta de mim alguns pedaços
do meu ser dividido. E tento, às vezes,
fraco e mesquinho como um delinquente,
redescobrir a minha identidade.

Impossível voltar, e continuo.
Elaboro miragens e as persigo
com a determinação dos suicidas.

E, passo a passo, cada dia cumpro
a função de votar o que me resta
em sacrifício a ti, num rito amargo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

Edward Cucuel (1875-1954)

Woman reclining by a lake.

Minha pátria é minha língua

Fanatismo
Florbela Espanca (1894-1930)




Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

“Tudo no mundo é frágil, tudo passa...”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!...”

sábado, 22 de janeiro de 2011

François Boucher (1703-1770)

La toilette de Venus.

Poesia em tradução

O amor transido
Anacreonte (Século VI a.C.)





A noite passada,
à hora em que a Ursa
mais perto discursa
da mão do Boieiro;
e o sono profundo
no grêmio fagueiro
por todo esse mundo
restaura os mortais,
em meio era a noite;
o exemplo dos mais
no leito eu seguia;
sereno dormia . . .
À porta imprevisto
Cupido me bate!
À pressa me visto;
redobra o rebate;
acudo a correr.
“Sou eu, – diz de fora, –
não tens que temer;
sou um pequenino
que vaga, a tal hora,
molhado e sem tino,
perdido no escuro,
pois lua não há.”
Ouvi-lo gemendo
de mágoa me corta;
a lâmpada acendo,
franqueio-lhe a porta. . .
em casa me está!
Descubro (em verdade
mentido não tinha)
gentil criancinha
com arco e carcás.
Remexo nas brasas
da minha lareira;
restauro a fogueira;
as mãos, que são gelo,
lhe aqueço nas minhas,
lhe espremo o cabelo,
lhe enxugo as asinhas;
já frio não faz.
“Vejamos se a chuva
(dizia e sorria)
a corda do arco
me não danaria!”
Levanta-o do chão;
recurva-o, dispara
no meu coração.
A frecha que o vara
parece um tavão.
Eu, dores danadas,
e o doido às risadas,
de gosto a pular!
“– Meu caro hospedeiro,
(me diz prazenteiro)
agora é folgar.
Permite me ausente;
meu arco está são...
Quem fica doente
é teu coração!”


(Trad. Antônio Feliciano de Castilho)

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901)

The two girlfriends.

I don’t like myself

Geraldo Carneiro


queria ser outro, perambular

entre as bandeiras enfunadas de pasárgada

bailar no bas-fond de Baudelaire

navegar no barco de Rimbaud

às vezes veranear nos subúrbios do Inferno

na selva selvagem de Dante

sempre argonauta de ultramares

sem o terror narcísico do espelho:

o mesmo círculo a mesma escrita o mesmo rosto

o mesmo animal confinado

em sua ridícula circunstância

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Michelangelo da Caravaggio (1571-1610)

Lute Player.

O salto

Moacir Andrade
À memória de João Crisóstomo



Sob o céu calmo à luz do ocaso,
a flor se abre.
Pura transparência
dentre pétalas de ouro e prata,
líquidas estrelas.
Surge o peixe – esguio – gracioso salto,
sob o brumoso sol de brilho flutuando.
De volta ao rio,
o nauta num mergulho eriça a água
de véus e suaves
círculos concêntricos,
e reintegra-se às sombras abissais.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Amedeo Modigliani (1884-1920)

Nude Looking Over Her Right Shoulder.

Dabacuri – da natureza das coisas 4

Zemaria Pinto




à beira do lago,

o lírio branco floresce

– manhã de novembro




ploóp... ploóp... ploóp...

no silêncio da manhã,

a rã na piscina

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Eliseu Visconti (1866-1944)

Inocência.

É quase de manhã

Cândida Alves



É quase de manhã
ainda sinto teu cheiro
no meu travesseiro
levanto com raiva
pra lavar a cara
e escovar o cabelo
não dá pra esquecer
mil vezes te odeio
grito pra não enlouquecer
desgraçado, só quer me comer
mas quando chega a tarde
e o vazio me invade
ninguém telefona
além de você
tudo bem, “vamo vê”
mesmo papo, só cama
dessa vez pode ser
me arrumo e perfumo
pra esperar você
de agora em diante
eu que vou te comer

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Micah Doron

Birth of Venus.

Estante do tempo

A lucidez da pedra
Antísthenes Pinto (1929-2000)




A lucidez é a loucura plena
como a pedra é água desde o início.
O amor, essa coisa mítica e terrena
é o fruir da ave – um artifício.

A loucura há de me levar acima,
amplamente, além das convenções,
há de retornar também em implosões
de seres e paisagens, aquém da rima.

O retorno é sempre um passo à frente
porque indescobrível como a aurora.
E é por isso que, hirto ou indolente,
perscruto o universo a toda hora.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Isidore Pils (1813-1875)

Nude Woman.

Minha pátria é minha língua

Soneto de Quarta-feira de Cinzas
Vinicius de Moraes (1913-1980)




Por seres quem me foste, grave e pura
Em tão doce surpresa conquistada
Por seres uma branca criatura
De uma brancura de manhã raiada

Por seres de uma rara formosura
Malgrado a vida dura e atormentada
Por seres mais que a simples aventura
E menos que a constante namorada

Porque te vi nascer de mim sozinha
Como a noturna flor desabrochada
A uma fala de amor, talvez perjura

Por não te possuir, tendo-te minha
Por só quereres tudo, e eu dar-te nada
Hei de lembrar-te sempre com ternura.

sábado, 15 de janeiro de 2011

Georges Seurat (1859-1891)

Les Poseuses.

Poesia em tradução

Da prisão
Adrienne Rich





Sob minhas pálpebras outro olho se abriu
e olha cruamente
a luz

que penetra vindo do mundo da dor
mesmo enquanto durmo

Fixamente ele encara
tudo que eu enfrento

e mais

ele vê os cassetetes e as coronhas
levantando e baixando
ele vê

o detalhe que a TV não mostra

os dedos da polícia feminina
esquadrinhando a boceta da jovem prostituta
ele vê

as baratas caindo dentro da panela
onde preparam carne de porco
no presídio

ele vê
a violência
encravada no silêncio

Este olho
não é para chorar,
sua visão
deve ser nítida

apesar das lágrimas em meu rosto

seu objetivo é a lucidez
nada deve ser esquecido


(Trad. Olga Savary)

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Lambert Sustris (1515?-1584?)

Liggende Venus.

Se eu tiver que partir...

Antonio Lazaro de Almeida Prado
(Para Themis)



Se eu tiver que partir, que seja à noite,
Quando inda restam a esperança e o anseio
De, cedo, reencontrar-me nos teus sonhos.
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

De noite, tu dirás que apenas durmo,
Que após rápido sono, curta ausência,
Hei-de voltar para o marcado encontro...
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

De dia, não será, porque de dia
Sabemos que o navio parte, e não volta...
Se eu tiver que partir, que seja à noite...

Então, tu poderás fechar-me os olhos,
Beijar-me o rosto, minha doce amada,
Porque te deixarei somente à noite...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Man Ray (1890-1976)

Five Figures.

Ontem sonhei com três rinocerontes

Thiago de Mello



Ontem sonhei com três rinocerontes
que me chamavam, rosas no unicórnio,
pelo nome que tive de menino.
Mordidos pelos pássaros noturnos,
pupilas assombradas, me chamavam
a com eles partir, antes da aurora,
para o lugar onde as estrelas nascem,
enquanto se afundavam numa lama
coberta de ametistas e de garças.
Quero ficar. Mas antes que se afundem,
a pele, peço, a pele que me deixem,
em carne viva sigam pelos pântanos,
mas a pele me deixem, que proteja
o que no peito meu finda de infância.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Charles-Joseph Natoire (1700-1777)

Venus and Cupid.

o século

Zemaria Pinto




no espelho partido eu vi minha face torta
vi meu olho derramado
em órbitas desesperadas
meu olho tentando sobreviver
eu vi o mar nos meus olhos
e senti o gosto, o gosto horrível do sal
queimar minha língua impura
eu vi uma cortina de sangue sobre minha cabeça
ouvi o ranger dos dentes
o abrir e fechar das portas
– como é difícil, pai!
o espelho refletia a miséria dos meus olhos
a miséria que eu via embaçada
a insegurança de ser
cada vez mais forte dentro de mim
tudo o mais natural
tudo trêmulo, trânsito
– tão difícil de entender

no espelho partido vi minha face torta
uma mulher morta vestida com um punhal
patético como uma vida
natural como uma vida
– estético para planos dramáticos –
quem furou o olho do rei?
quem matou o filho do deus?
– como é difícil explicar um espelho!
a sala escura fechou-me para o mundo
foi o espelho partido a última visão
a face torta, a frase morta
a frase oca, a face louca
o espelho mentindo através dos séculos
– mentem mais os espelhos partidos

no espelho partido vi uma face torta
vi um olho derramado
vi o mar
e bebi o sal, o maravilhoso sal
que me abriu a boca às impurezas do mundo
e vi sangue, vi dentes
vi portas exangues
vi também uma mulher vestida de preto
com um punhal na mão
o rei o deus a sala eu vi
– eu vi o século refletido em um espelho justo!


                                                             (1974)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Luis Ricardo Falero (1851-1896)

La Favorite.

Metáforas da vida

Rayder Coelho




Um adulto não deveria chorar

ou até deveria chorar mais vezes

mas não com as dores do parto

ou com a partida de quem lhe deu a vida.



Mas com um desabrochar de uma rosa

de uma crisálida partida.

E as lágrimas assim como as crisálidas

já não seriam apenas lágrimas

mas metáforas da vida.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Ruth Poniarski

Birth of Venus.

Estante do tempo

Sonetos autobiográficos 1
L. Ruas (1931-2000)




Fecundar o próprio sêmen sem ter medo
De em si mesmo dar o ser ao monstro azul.
Escalar o próprio abismo desmedido
E sorrir a cada passo dado em falso.

Desmembrar a tessitura do mistério,
Dissecar a óssea face em frente ao espelho
Estancando a imagem tola no momento
Da mentira venerável — prece infame —...

E depois compor de novo a melodia,
Restaurar as cores todas distendidas,
Refazer o mesmo poema delicado

E ficar paradamente na vidraça
Contemplando a chuva grossa e intermitente
Escorrendo em borbotões pelas sarjetas.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Max Ernst (1891-1976)

The Clothing of the Bride.

Minha pátria é minha língua

A mulher e a casa
João Cabral de Melo Neto (1920-1999)




Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente de dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra:
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.

sábado, 8 de janeiro de 2011

Frank Dicksee (1853-1928)

Beatrice.

Poesia em tradução

Este poema é dos pássaros

Gary Snyder




Pássaros em vórtice convergem sobre os tetos
Milhafres mergulham, pendem para a forma de neblina enrolada
Da costa: pontos mudando linhas em linhas na altura,
                       definido o futuro.
Espane fumaça dos olhos,
              poeira da mente,
Com o abano de rêmiges de águia.
Um falcão flutua rumo ao céu distante.
Uma marmota sibila entre rochas enormes.
Chuva nas colinas californianas.
Mariscos se prendem a pedras do mar
Sugando as marés da Primavera

Chuvas empapam o pardo restolho
Campos repletos de patos

Chuvas varrem o eucalipto
Estranhos pinheiros na costa
                      folhas agulheadas duas por feixe
O céu inteiro tremula ao vento
Andorinhões
Voando pela tempestade
Volteando por perto escutam silvo agudo de asas
Maçaricos
                    cinza pálido
                    lençóis pluviais desenrolando-se lentos,
Negros andorinhões.
                    ...os andorinhões declaram
Enquanto disparam: Vê agora ou jamais!


(Trad. Paulo Vizioli)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Joaquin Sorolla y Bastida (1863-1923)

Bacante.

Lições de arquitetura

Ferreira Gullar

Para Oscar Niemeyer


No ombro do planeta
(em Caracas)
Oscar depositou
para sempre
uma ave uma flor

(ele não faz de pedra
nossas casas:
faz de asa)

No coração de Argel sofrida
fez aterrizar uma tarde
uma nave estelar
                           e linda
como ainda há de ser a vida

(com seu traço futuro
Oscar nos ensina
que o sonho é popular)

Nos ensina a sonhar
mesmo se lidamos
com matéria dura:
o ferro o cimento a fome
da humana arquitetura

nos ensina a viver
no que ele transfigura:
no açúcar da pedra
no sonho do ovo
na argila da aurora
na pluma da neve
na alvura do novo

Oscar nos ensina
que a beleza é leve

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Jean-Marc Nattier (1685-1766)

Marie Adelaide of France as Diana.

A sombra

Cláudio Fonseca

Oh Morte, vem calada
como costumas vir na flecha
(Anônimo sevilhano)


Dormes nesta hora. A sombra enorme
veio olhar teu corpo em abandono.
E as coisas que amaste, em tua volta
começam a dissipar-se... como um sonho.

As luzes do teu dia tecem o manto.
Eu vejo a tua aurora derradeira.
Hoje, ao acordares deste sono,
o pouco que te resta é a vida inteira.

E a casa já aguarda o gesto triste –
as mãos abrindo a agenda... de utopia.
No campo um musgo aflora, que por certo
apagará teu nome, e o deste dia.

E o dia (amanhã com nomes outros)
matura, nesta hora, seus enredos.
As naus já estão partindo... e sem retorno.
A tua ficará entre os rochedos.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Oscar Ortiz

La Espera.

Dabacuri – da natureza das coisas 3

Zemaria Pinto




no alto da mangueira,

o sanhaço faz seu ninho

– vida renovada




manhã de novembro,

aragem primaveril

– promessa de sol

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Norman Engel

Standing nude.

Na frente de casa

Davi Soledade


Ela saia às sete.
Sempre com seus lisos cabelos pretos impecavelmente penteados.
Sua face alva como a neve parecia-me demais inerrônea.
Tudo esteticamente perfeito… feições divinas.

Ela cursava letras.
Em suas mãos pálidas cortadas por esverdeadas veias
Havia sempre um livro diferente a cada semana.
Hemingway, Bukowski, Dostoiévski, Carlos Drummond, Thiago de Mello.
Eram seus preferidos; como ela gostava de ler!

No canto superior de seus lábios convidativos ao beijo
Havia uma sutil cicatriz.
Uma particularidade que me fazia almejá-la ainda mais.

Eu nunca soube a história daquela cicatriz.
E nem a de sua dona.

Ela voltava da faculdade à tarde, lenta.
Da janela de casa eu a observava.
Era sempre a mesma rotina.
E eu assistia aquela epopeia morna com um apreço latente.

Quando ela saia à rua, raríssimas vezes,
Eu passava ao seu lado, em sentido contrário.
E contemplava sua beleza, discretamente.
E ela contemplava aquela face embasbacada tentando conter-se.

Ela passava por mim quase muda.
Comunicava do seu íntimo uma sutil antipatia por mim.
Por que aquele desprezo?
Só porque eu era decassilabamente incorreto?

Da janela de casa eu não a tinha visto chegar.
Naquele dia só ouvi o choro de seus pais.
Eu não estava bem.
E meus lábios nunca tocariam aquela cicatriz.

Eu nunca desconfiei que aquela epopeia morna teria fim.
Ela nunca desconfiou que um dia não fosse voltar.
Ela nunca desconfiou que não terminaria de ler Crime e Castigo.
E ela nunca desconfiou que na frente de sua casa morava um poeta.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Nelson Braga Junior

Nascimento de Vênus.

Estante do tempo

Onanismo
Farias de Carvalho (1930-1997)




Na vulvática flor da cadela saciada

os olhos do menino acenderam mistérios.

À noite, na penumbra, as lobas deslizaram

pelos punhos da rede. Mãos infantes

pela primeira vez bailaram lúcidas

a acrobacia atônita do sexo.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Jean Dupas (1882-1964)

Les perruches.

Minha pátria é minha língua

Círculo Vicioso
Machado de Assis (1839-1908)




Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
– “Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!”
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

– “Pudesse eu copiar o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!”
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

– “Mísera! tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume!”
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

– “Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vaga-lume?”

sábado, 1 de janeiro de 2011

William Etty (1787-1849)

Diana Standing by a Waterfall.

Poesia em tradução

Prólogo do Intermezzo
Heinrich Heine (1797-1856)



Um cavalheiro havia, taciturno,
Que o rosto magro e macilento tinha.
Vagava como quem de algum noturno
Sonho levado, trépido caminha.
Tão alheio, tão frio, tão soturno,
Que a moça em flor e a lépida florinha,
Quando passar tropegamente o viam,
Às escondidas dele escarneciam.

A miúdo buscava a mais sombria
Parte da casa, por fugir à gente;
Daquele posto os braços estendia
Tomado de desejo impaciente.
Uma palavra só não proferia.
Mas, pela meia-noite, de repente,
Estranho canto e música escutava,
E logo alguém que à porta lhe tocava.

Furtivamente então entrava a amada
O vestido de espumas arrastando,
Tão vivamente fresca e tão corada
Como a rosa que vem desabrochando;
Brilha o véu; pela esbelta e delicada
Figura as tranças soltas vão brincando;
Os meigos olhos dela os dele fitam,
E um ao outro de ardor se precipitam.

Com a força que amor somente gera,
O peito a cinge, agora afogueado;
O descorado as cores recupera,
E o retraído acaba namorado,
O sonhador desfaz-se da quimera...
Ela o excita, com gesto calculado;
Na cabeça lhe lança levemente
O adamantino véu alvo e luzente.

Ei-lo se vê em sala cristalina
De aquático palácio. Com espanto
Olha, e de olhar a fábrica divina
Quase os olhos lhe cegam. Entretanto,
Junto ao úmido seio a bela ondina
O aperta tanto, tanto, tanto, tanto...
Vão as bodas seguir-se. As notas belas
Vêm tirando das cítaras donzelas.

As notas vêm tirando, e deleitosas
Cantam, e cada uma a dança tece
Erguendo ao ar as plantas graciosas.
Ele, que todo e todo se embevece,
Deixa-se ir nessas horas amorosas...
Mas o clarão de súbito fenece,
E o noivo torna à pálida tristura
Da antiga, solitária alcova escura.


(Trad. Machado de Assis)